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ENTREVISTA

Ft. Nuno Morais

RFD Nº04

NUNO MORAIS

Fisioterapeuta

 
Fisiotrauma Fisioterapia
 

Ex-jogador de Râguebi do Dramático de Cascais
Representou a Seleção Portuguesa de Rugby Union

O fisioterapeuta, sete vezes campeão pelo Dramático de Cascais e outrora uma referência na seleção de Portugal a par do irmão Tomaz, já foi operado ao joelho e à coluna, sabe que um dia vai ter de colocar uma prótese, mas se viajasse no tempo voltaria a pagar o mesmo preço pelo sonho e pela paixão.

“Não trocava nada do que o râguebi me deu”

REVISTA DE FISIOTERAPIA DESPORTIVA – Quais foram as razões que o levaram a dedicar-se à fisioterapia?
NUNO MORAISA principal razão teve a ver com a busca de uma saída profissional. Devo confessar que não fazia a menor ideia do que era ser fisioterapeuta. Tinha 23 anos, tinha feito três anos de tropa como oficial em Mafra e como não queria ir para a Academia Militar acabei por candidatar-me ao curso de fisioterapia na Escola de Alcoitão. O meu pai conhecia um médico fisiatra que exercia lá e convenceu-me a fazer a inscrição. Fiquei como 10º suplente, mas, entretanto, houve umas desistências e eu aproveitei.

RFD – O interesse pela fisioterapia não resultou de nenhuma lesão que tivesse sofrido nos três anos de tropa?
NMNão… felizmente, não foi o caso. Nunca tinha precisado sequer de fazer umas massagens, veja bem. Sabe que a ida para Mafra também teve a sua estória. Entrei em engenharia civil, mas como tinha de fazer o curso em Braga e na altura estava em grande na seleção de râguebi, preferi fazer o serviço militar.

RFD – Então a engenharia começou por ser a grande paixão…
NMNa altura suscitava o meu interesse, sim. Mas hoje não trocava a minha profissão por nenhuma outra. O râguebi, como deve imaginar, é outra das grandes paixões da minha vida e foi graças ao râguebi que no final dos anos 80 voltei a África. Estive na África do Sul e mais tarde no Zimbabué, o que na altura teve um impacto sentimental forte porque saí de Angola com 14 anos e nunca mais tinha usufruído da oportunidade de voltar a África.

RFD – Nasceu em Angola?
NMEm Luanda, na freguesia do Carmo e mais tarde vivi em Nova Lisboa.

RFD – O impacto sentimental quando regressou a África tem a ver com as diferenças que encontrou quando chegou a Portugal?
NMInevitavelmente. São situações que se cruzam. Ainda hoje, quando estou em países tropicais, quando estou na Austrália, a vegetação, o cheio da terra, as pessoas, o clima, tudo isso me transporta para muito do que experienciei em Angola. Só quem conhece estas realidades percebe as diferenças de atmosfera e o que estou a dizer.

RFD – Que género de contrastes mais o marcaram?
NMBem, em primeiro lugar devo dizer que se coloca logo a questão do clima. É muito diferente. Mas em muitos aspetos os horizontes em África são muito mais largos. E as pessoas são muito mais abertas, constroem-se amizades facilmente… Aqui a sociedade funciona de uma maneira mais fechada, embora sinta diferenças entre zonas do país. Para lhe dar um exemplo, estive recentemente a dar um curso no Norte e senti por parte dos colegas do Porto uma forma de interação e de comunicação distinta do que acontece em Lisboa. No Norte encontrei pessoas mais abertas e comunicativas.

RFD – O facto de ter nascido e crescido em África influenciou muito o seu posicionamento profissional?
NMComo é natural, antes de mais, influenciou a minha forma de ser e de estar. E mais tarde creio que marcou o género de abordagem e de conduta na profissão, sim. Considero-me uma pessoa determinada e trabalho desde os 15 anos. Com essa idade já estava atrás de um balcão a fazer empadas e a servir croquetes e rissóis. E mesmo no râguebi, como não tinha grande talento, servia-me do físico para ir atrás dos meus objetivos. Nunca desisti. É algo que está na pele, penso que tem a ver com um espírito combativo. Sempre fui um atleta e nunca tive medo.

RFD – Uma mentalidade de lutador que passou ao Frederico…
NMPenso que a minha personalidade o influenciou bastante. Lembro-me que aos 14 anos o Kikas já disputava uma final de um circuito de sub-21 com um adversário muito mais velho que ele e na última etapa não tinha ondas. Quando já ninguém acreditava que ele pudesse vencer eu continuava lá fora a pedir-lhe para acreditar. “As ondas vão chegar! As ondas vão chegar!”, gritava-lhe e o que é certo é que a 10 minutos do fim vieram duas ondas e ele foi campeão graças a essa força e a esse querer. Tenho a certeza de que no dia em que o Kikas tiver um negócio só dele vai também beneficiar desse espírito batalhador e dessa determinação.

RFD – E quando é que convence o seu irmão (ndr: Tomaz Morais, diretor da Academia do Sporting Clube de Portugal) a abraçar o “negócio” do surf?
NMNão… não vá por aí (risos)… O meu projeto exclusivo é o Frederico e no que respeita ao surf, toda a minha atenção está concentrada nisso. O Tomaz é 10 anos mais novo do que eu e não me intrometo na área dele.

RFD – Na sua clínica, trata muitos atletas do surf?
NMTenho pacientes do surf, do futebol, do ténis, do râguebi, do paddle, enfim, de diversas modalidades. Atualmente dedico-me mais ao tratamento das lesões musculoesqueléticas, embora no início do meu percurso estivesse mais ligado à neurotraumatologia. Antes da pandemia estava no meu gabinete 12 horas por dia. Trabalhava muitos dias das 08h00 às 20h00. Nos últimos meses todos nós fomos obrigados a mudar. A gestão de doentes, a partilha do espaço, as condições do espaço para os tratamentos, tudo isso foi sujeito a uma revisão porque eu não desisto dos meus pacientes e há inclusivamente gente que acompanho há mais de três anos. Isso também obriga a um esforço adicional. Hoje divido o gabinete com uma colega e só trabalho das 08h00 às 14h00. Vamos ficando mais velhos e temos de aproveitar cada vez melhor a vida.

RFD – Há lesões predominantes nas diferentes modalidades?
NMPode dizer-se que sim. Olhando concretamente para o caso do surf, as lesões mais frequentes são no joelho, no ombro, tornozelo, traumáticas, no fundo. Não é comum encontrar roturas musculares no surf. É preciso notar que há muitas pessoas que contraem lesões por prática desportiva não competitiva. Diria que são 70% dos casos. Magoam-se por comportamentos em desportos associados. Fazem surf, mas também jogam futebol ou paddle, só para dar um exemplo. É preciso saber estabelecer a origem da lesão. Por vezes tem a ver com comportamentos nos ginásios, a fazer musculação, crossfit, etc. O surf como atividade lúdica é inteiramente saudável. Agora se for fazer as ondas da Nazaré, aí já entramos no campo da aventura. É outra adrenalina e os perigos são outros. As potenciais lesões já nada têm a ver com o desgaste do músculo, do tendão ou da articulação.

RFD – E o Nuno, enquanto atleta de râguebi, teve alguma lesão mais complicada?
NMAí já posso dizer que sim. Em 1989 fui operado aos meniscos interno e externo, mas não me quiseram operar ao ligamento cruzado anterior. Mas não quis deixar de jogar e ainda hoje sofro com as consequências. Mais dia menos dia vou ter de colocar uma prótese. Fui-me estragando com o decorrer do tempo… Provavelmente também por causa dessa insistência em jogar fui mais tarde, em 2007, operado a uma hérnia lombar (L4/L5). Mas digo-lhe com toda a franqueza que não voltava atrás. Mesmo sabendo o que sei hoje, com a artrose no joelho, não trocava nada do que o râguebi me deu. Se viajasse no tempo, faria exatamente a mesma coisa. O râguebi proporcionou-me tantas coisas boas! No Dramático de Cascais fomos sete vezes campeões nacionais, tive o privilégio de jogar na seleção (ndr: era nº2, talonador), de defrontar equipas de topo com a camisola de Portugal, beneficiei de tantas emoções e de momentos de tanta felicidade que seria incapaz de alterar o que quer que fosse. Ainda sinto um arrepio quando me lembro daquela Taça Ibérica que conquistámos no último minuto num tempo em que a seleção era muito pequenina no panorama do râguebi mundial. Há coisas que não têm preço. Aliás, naquela altura pagávamos para jogar râguebi. Mas tinha muitas recompensas. Quando estava na seleção trabalhava no Hospital Egas Moniz e os colegas tinham sempre aquela curiosidade e perguntavam-me como tinha corrido o jogo, o que tinha acontecido ao meu olho… Valeu tudo incrivelmente a pena, porque graças ao râguebi criei amizades e conhecimentos que são para a vida. Por isso é que aconselho sempre as pessoas a praticarem um desporto e de preferência um desporto competitivo. Para também poderem serem competitivas na vida.

Ft. Nuno Morais com o filho Frederico (Kikas) Morais

OS PONTOS QUE NÃO QUERIA PARA O FILHO

ai do campeoníssimo Frederico (Kikas) Morais, integrante da missão portuguesa nos Jogos de Tóquio, Nuno tem dedicado grande parte da sua vida como fisioterapeuta a tratar atletas de alta competição e de prática desportiva com caráter meramente lúdico. Mas nem o facto de estar habituado a lidar com todo o tipo de lesões o podia preparar para aquilo que subitamente aconteceu há 15 anos no Havai e com o… próprio filho. “Era o primeiro dia do ano e o Kikas faz anos a 3 de janeiro, veja bem… O mar estava puxado e depois de uma onda muito grande o Kikas é arrastado e embate no coral, ficando coberto de sangue, na cabeça, nas costas… Ainda por cima, com coral vivo há logo o perigo de uma infeção. Pode imaginar o susto, apesar de não o ter confessado ao Frederico na altura. Não sabíamos se tinha feridas profundas, se tinha algum osso perfurado, tratou-se realmente da situação mais complicada que vivi com o Kikas. Levou para aí uns 30 pontos, na cabeça e nas costas. Estávamos em Honolulu, claro que foi imediatamente para o hospital, trataram-no, colocaram-no a soro, fizeram-lhe todos os exames necessários, mas lembro-me que logo na altura tive de pagar 5 mil dólares. Lá funciona assim, tive de pagar no dia seguinte todas as despesas. Felizmente, tudo acabou por correr bem e claro que a nós o que interessava era que o Kikas não tivesse sofrido nada de profundamente grave.”

FUTEBOL, FARDAS E FORAS DA LEI

Apesar de não ser fã do desporto-rei em Portugal, Nuno Morais recusa a ideia de que o futebol teria muito a aprender com uma das grandes paixões da sua vida, o râguebi. “Sinceramente, não faço juízos de valor e nem sou daqueles que acham que uns são uns cavalheiros e outros uns foras da lei. Já se vê de tudo, infelizmente, nas duas modalidades. Em Portugal, pelo menos. Outro dia estava a assistir a um jogo de râguebi na TV e dava para ouvir os insultos que os espetadores dirigiam aos árbitros. Não fazia diferença alguma com aquilo que acontece no futebol. É algo cultural. Na Austrália e na Nova Zelândia não acontece. Posso até oferecer o contraponto. Segui também pela TV um jogo na Nova Zelândia que correspondia à final entre dois colégios, o estádio estava cheio, os miúdos todos com as respetivas fardas e tudo decorreu num ambiente de absoluto desportivismo. Não quero dizer que tudo se resuma às fardas ou à indumentária, mas às vezes o uso de uma farda significa também um sentido de compromisso perante a instituição e perante a sociedade. Quando somos cumpridores de regras e somos rigorosos para connosco e para com os outros, somos simultaneamente capazes de prestar solidariedade. Em Portugal dever-se-ia levar isto mais vezes em conta. Até no free surf já se vêm infelizmente cada vez mais exemplos de pessoas que acham que o mar acaba naquele dia e discutem e quase chegam a vias de facto uns com os outros.”

UMA “FINTA” DE KIKAS E UM EMPRÉSTIMO DE BERARDO

Frederico Morais só uma vez resolveu experimentar o futebol. Mas… não era a sua praia, manifestamente. “Tinha 17 anos e resolveu jogar com os amigos. Mas torceu o pé e nunca mais jogou!”, conta o pai, recordando também “a lesão do tornozelo que aos 27 anos” Kikas sofreu, “sem consequências de maior.” Ou seja, conforme o próprio Nuno reconhece, Frederico não teria no futebol muitas chances de chegar à seleção ou não fosse o experiente fisioterapeuta um antigo internacional por Portugal no râguebi. “Olhe, quer uma estória engraçada desses tempos do râguebi? A primeira vez que voltei a África e ao serviço da seleção nem sequer foi oficialmente como internacional. Não íamos como seleção nacional. Fomos jogar à África do Sul um ano antes do apartheid e quem patrocinou essa ida da equipa foi o comendador Joe Berardo! Ainda me lembro de ir ali à Avenida da República, aos escritórios do homem, receber um blazer para usar na deslocação à África do Sul!…”