TEMA
Clínica do Dragão
RFD
REGRESSO AO DESPORTO APÓS RECONSTRUÇÃO DO LIGAMENTO CRUZADO ANTERIOR DO JOELHO: DOS CRITÉRIOS À DECISÃO INFORMADA E PARTILHADA!
Rogério Pereira, Renato Andrade, Cátia Cardoso, Cristina Valente, João Espregueira-Mendes
Clínica do Dragão, Espregueira-Mendes Sports Centre – FIFA Medical Centre of Excellence
RESUMO
Apenas 55% dos atletas após reconstrução do ligamento cruzado anterior (LCA) retomam o desporto de elite. Atletas masculinos jovens com respostas psicológicas positivas, simetria nos hop tests e participação desportiva ao nível da elite são fatores que se associam com uma taxa mais alta de retorno ao nível desportivo pré-lesão. A taxa de re-ruptura ou a lesão do LCA contralateral pode ocorrer em mais de 30% dos atletas com ≤18 anos. O regresso ao desporto de nível I pode aumentar 4 vezes o risco de recidiva. Suportados em evidência transdisciplinar, recomendamos a decisão do retorno ao desporto na dependência dos resultados de uma bateria de testes, aos 9 meses para os atletas mais jovens, e quando cumulativamente alcancem as metas nos testes psicológicos e físicos.
SUMMARY
The shoulder joint complex has great mobility and, as such, of great instability, requiring a thorough, progressive, complex and time-consuming rehabilitation process in order to achieve the athlete’s functional recovery and, in the particular case, the competition. The rehabilitation begun after medical indication, on this case after three weeks, on a high-level wakeboard athlete, through four phases that lasted six months after surgery. The study of this text was to describe the several phases of the rehabilitation process, the duration of each phase, with its restrictions and goals to be achieved until the conditions necessary for the athlete’s return to sports and competition.
PALAVRAS-CHAVE / KEYWORDS
Ligamento cruzado anterior, reconstrução do ligamento cruzado anterior, retorno ao desporto, critérios para retorno
Anterior cruciate ligament, anterior cruciate ligament reconstruction, return to sports, criteria to return
Os resultados após reconstrução do ligamento cruzado anterior (RLCA) do joelho são insatisfatórios.1 Sendo verdade que apenas 65% regressam ao nível desportivo que praticavam antes da lesão e somente 55% retomam o desporto de elite.2 Atletas masculinos, mais jovens, com respostas psicológicas positivas4,5, simetria nos hop tests e participação desportiva ao nível da elite consubstanciam fatores que se associam com uma taxa mais alta de retorno ao nível desportivo pré-lesão.
A re-ruptura pode ocorrer em 1 de cada 4 atletas com menos de 25 anos de idade e que regressam ao desporto de nível I (que incluem o salto, rotações e mudanças rápidas de direção), registando-se metade no primeiro ano após a RLCA3. Foi reportado também que em adolescentes com ≤18 anos aproximadamente 1 em cada 3 recidiva ou lesiona o LCA contralateral.4,5 No momento da decisão de retomar o desporto, atletas e outros stakeholders devem ser informados que o regresso ao desporto de nível I pode aumentar quatro vezes o risco de recidiva em relação a desportos classificados com risco mais baixo.6
O tempo decorrido após a cirurgia, estabelece-se como um critério insuficiente para determinar a prontidão para o regresso a desportos de nível I. Tradicionalmente acreditou-se que seis meses seriam suficientes para reabilitar o atleta, mas hoje é mais claro que os seis meses poderão não ser suficientes. Por cada mês que o retorno foi atrasado até aos nove meses pós-cirurgia, a taxa de recidivas diminuiu em 51%.6 Existe ainda alguns autores que, com base em considerações biológicas (ex. ligamentização, contusões ósseas) e funcionais (ex. restauração da força e controlo motor), questionam a importância de atrasar dois anos o regresso.7
Apesar da falta de consenso e uso sistemático de um conjunto de critérios objetivos para suportar o processo de decisão para a retoma desportiva após RLCA,8,9 há evidência que o cumprimento de critérios objetivos pelos atletas em reabilitação pode reduzir o risco de re-ruptura em 84%6 e que o seu incumprimento aumenta o risco 4 vezes.10 Todavia, a evidência é contraditória11 e, numa revisão sistemática com meta-análise recente12, não foi estabelecida uma associação estatisticamente significativa entre a decisão de regresso ao desporto com base em critérios objetivos e risco de lesão secundária. Há, contudo, consenso entre especialistas sobre 6 medidas que definem o sucesso nos resultados obtidos 1 e 2 anos após a lesão e tratamento conservador ou cirúrgico do LCA, i.e., a ausência de giving way, retorno ao desporto, pacientes que não apresentem mais que grau moderado de derrame, restauração da força do quadricípite e dos isquiotibiais (>90%) e a utilização de resultados reportados pelos pacientes; estas estão em linha com o disposto na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da Organização Mundial de Saúde.13 A mudança na prática clínica urge ante a evidência científica e mais quando apenas 13% estudos (num total de 264) reportam critérios objetivos para suportar a decisão sobre o regresso ao desporto após RLCA.14 Agrava saber que cerca de 75% dos pacientes retomam a prática desportiva sem cumprir um conjunto de critérios6 e só 14% dos atletas mais jovens, apesar da alta clínica e desportiva, parecem cumprir cumulativamente as metas recomendadas para critérios clínicos, neuromusculares e funcionais15: testes de força (≥ 90%), hop tests (≥ 90%) e o International Knee Documentation Committee (IKDC).
Insuficiências na restauração da estabilidade do joelho16,17 e persistência de comportamentos motores anormais18 podem alterar a artrocinemática e levar a padrões patomecânicos e a morbidade associada como a osteoartrose precoce.19,20 Estes fatores assistem, simultaneamente, à insatisfação factual com os resultados obtidos após a RLCA e à urgência de fazer mais e melhor, suportados nas boas práticas e nas últimas evidências. As capacidades físicas e a sua restauração implicam noutras dimensões como o desempenho físico, i.e., a força, a título de exemplo, correlaciona com a taxa de desenvolvimento de força, salto, sprint, mudança de direção e outros.21
Vários fatores físicos (ex. simetria nos hop tests) e contextuais (ex. idade e sexo, respostas psicológicas positivas) parecem afetar a taxa de retorno ao desporto após RLCA.1 Assim, é determinante alargar e acelerar a implementação da ciência na nossa prática clínica, encurtando o desfasamento na transposição para a prática e iniquidades no acesso a paradigmas de reabilitação mais seguros e eficazes. Estas medidas irão refletir-se também para o bem-estar, saúde e qualidade de vida dos atletas afetados pela rutura do ligamento cruzado anterior. A implementação de guidelines de práticas clínicas relacionadas com a reabilitação após a RLCA é determinante apesar de carecerem ainda de medidas de aplicabilidade.22 As guidelines caracterizam e balizam as intervenções e o seu timing, com mais ou menos força no nível de recomendação face à evidência disponível, são um garante do exercício da fisioterapia suportado na ciência. Isto, combinado com as precedências técnico-científicas e com a capacidade crítica dos fisioterapeutas para avaliar e caracterizar o atleta em reabilitação, traduz-se em boas práticas clínicas, i.e., na seleção criteriosa de intervenções baseadas na evidência, ajustando-as às circunstâncias clínicas, individualidade biológica e contextual.
Aqui, importa não correr o risco de individualizar em excesso e tornar a intervenção ineficaz, perdendo pela falta de compliance e ineficiência na gestão de processos clínicos, i.e., há que reconhecer a importância de medir e caracterizar para subagrupar e intervir com coerência na prescrição e na progressão com base em critérios. O emprego de conceitos, técnicas e estratégias da ciência da implementação – i.e., usar de estratégias que promovam a aderência e a compliance dos stakeholders com as boas práticas e últimas evidências – contribuem para a equidade no acesso, segurança e eficácia dos processos de prevenção, reabilitação e retorno ao desporto. As três componentes são indissociáveis nos propósitos e intercorrências.
O regresso ao desporto após RLCA é um conceito que vai da pré-habilitação à retoma desportiva e que enquadra premissas relacionadas com prevenção secundária, desde a rutura do enxerto ou lesão do ligamento cruzado anterior contralateral, de comorbidades, restauração da estabilidade do joelho, da cinemática e da cinética do membro inferior e o regresso ao nível competitivo pré-lesão. A lesão secundária é uma complicação frequente e devastadora, tendo incidência alta e mais elevada em atletas jovens, que regressam a desportos de nível I e no primeiro ano após a lesão. Aos 6 meses (3,2%) e aos 9 meses (11,3%) após RLCA, a percentagem de atletas que passa uma bateria de testes é baixa.23 Face à elevada incidência de lesões secundárias e do emprego vestigial de critérios objetivos para suportar o processo de decisão de regresso ao desporto, a abordagem clínica carece de revisão. O tempo enquanto critério (provavelmente regressar apenas após os 9 ou 12 meses no caso dos atletas mais jovens e que vão integrar desportos de risco elevado) e um conjunto de medidas inerentes a testes físicos e questionários fiáveis e válidos deverão ser prospetiva e recorrentemente aplicados para suportar o progresso na reabilitação e o regresso ao desporto. Estes pressupõem, resumidamente, suportar a recuperação biológica e aferir a evolução e estado de características e capacidades físicas,
motoras e psicológicas, porventura, parte ou a totalidade customizada ao desporto praticado. Apesar de haver um ou outro trabalho que encontrou associação estatística entre passar numa bateria de testes e maior incidência de lesões secundárias, impõe-se a necessidade de espírito crítico. É imperativo dissecar a qualidade metodológica e avaliar o risco de viés desses trabalhos perante os que apontam em direção contrária e a sua tradução em níveis de recomendação. Apesar de existir evidência que mostra uma associação entre cumprir as metas objetivas e o aumento de incidência nova lesão do ligamento cruzado anterior11, é importante contextualizar e não interpretar como uma barreira aos princípios de reabilitação e fundamentos do condicionamento atlético. Não seria a associação entre alcançar as metas e maior incidência de lesão secundária a antítese dos efeitos de treino, a subversão de princípios de biomecânica e dos fundamentos, processos, aplicações e propósitos da reabilitação?
Suportados em evidência transdisciplinar e nas boas práticas somos a favor de recomendar o uso de uma bateria de testes, um regresso aos nove meses pelo menos para os mais jovens e quando cumulativamente alcancem as metas nos testes físicos e psicológicos. Todos estes fatores são parte imprescindível do processo de decisão para o retorno ao desporto. Urge e impõe-se a adoção da ciência, o desenvolvimento de governance e comunicação clínica e o emprego de um conjunto critérios objetivos e subjetivos, onde o tempo decorrido após a RLCA pontua como um dos critérios, aplicáveis e ajustados ao contexto do exercício profissional e desportivo.
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Os autores declaram ausência de conflitos, assim como, a originalidade do manuscrito e a sua não publicação prévia.
Correspondência
Ft. Rogério Pereira – rp@espregueira.com