ENTREVISTA
Ricardo Paulino
RFD Nº19
Ricardo Paulino
Fisioterapeuta
FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE ATLETISMO
REVISTA DE FISIOTERAPIA DESPORTIVA –Neste momento, qual é o principal desafio que a Fisioterapia tem em Portugal?
Ricardo Paulino – – Atualmente, a Fisioterapia em Portugal depara-se com inúmeros desafios, transversais ao longo das últimas décadas. A autonomia da profissão, a especificidade nas áreas de intervenção e o critério da qualidade são aqueles que me merecem um relevo maior. Por outro lado, em setembro de 2019 foi publicada a lei que regulou a Ordem dos Fisioterapeutas. A criação da Ordem traduziu-se numa “nova esperança” para a comunidade de fisioterapeutas e utentes, com o foco na prestação dos cuidados de Fisioterapia. Considero que a Ordem dos Fisioterapeutas irá continuar a desempenhar um papel preponderante na área da qualidade dos cuidados, o que desde logo deve obrigar a que o financiamento assente na qualidade dos cuidados e não apenas na quantidade de tratamentos prestados. Tudo isto representa outra espécie de desafios. Se me permite, aproveitaria para sublinhar que a Ordem dos Fisioterapeutas tem, na verdade, assumido um papel crucial na regulamentação e promoção da prática da Fisioterapia no país. Como órgão da profissão tem, claro, o papel de regulação da profissão e a responsabilidade de criar padrões de formação, ética e de prática profissional. Sendo a Ordem, lá está, relativamente recente, considero que tem desenvolvido um trabalho meritório, preocupando-se nesta fase em criar condições e estratégias sustentadas por forma a que a profissão alcance o patamar de excelência.
RFD – … No recente ato eleitoral para a Assembleia da República, o que achou das propostas que os partidos apresentaram para a área da Saúde?
RP – Infelizmente, não tenho conhecimento de todas as propostas apresentadas nos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar. No entanto, considero que o modelo atualmente implementado está obsoleto e sem capacidade de uma resposta eficaz. Equiparo algumas das propostas apresentadas a “pensos rápidos”, que apenas solucionam alguns dos problemas do SNS a curto prazo.
RFD – Valendo-se do seu conhecimento e experiência, que medidas gostaria de sugerir ao próximo Executivo para melhorar a saúde dos portugueses?
RP – A saúde não pode ser vista apenas como um Ministério que funciona em termos económicos e financeiros com vista ao controlo de custos e de rentabilidade. Os números, por si só, não traduzem uma melhoria dos cuidados de saúde dos portugueses, como já se viu no passado e se observa no presente. Insisto que enquanto o critério de avaliação não assentar na qualidade dos serviços prestados ao invés da quantidade, não se vislumbrarão melhorias na saúde em Portugal. O modelo atual de prestação de cuidados já não responde de uma forma adequada e atempada às necessidades dos utentes. Existem critérios / princípios orientadores que deveriam urgentemente ser levados em conta.
RFD – Nomeadamente?…
RP – Foco nos resultados, em primeiro lugar. Não verificar somente os procedimentos realizados ou o número de serviços prestados. Avaliar os resultados reais alcançados, com critérios aplicados na melhoria da saúde, na redução de sintomas, na qualidade de vida e na satisfação do utente. O que concorre com a medição e a transparência dos resultados. É importante dar “voz” aos utentes, no sentido de avaliarem os cuidados prestados, por forma a garantir que os recursos sejam alocados de uma forma eficiente e os investimentos direcionados para áreas que representem os maiores benefícios em termos de saúde e de valor para esses mesmos utentes. Outro fator de melhoria que posso exemplificar prende-se com o acesso à saúde primária. Reorganizar os serviços de saúde primária, garantindo que todos os utentes tenham acesso a cuidados de saúde básicos e preventivos, próximos às suas comunidades, constitui um imperativo. Tem de existir um esforço na expansão de centros de saúde e na promoção de programas de saúde preventiva.
RFD – Prevenção na área da saúde é uma preocupação recorrente nos diversos depoimentos que a Revista tem recolhido…
RP – Compreensivelmente. Implementar políticas de promoção da saúde, incentivando hábitos saudáveis, como a alimentação equilibrada, os exercícios físicos regulares e a prevenção de doenças crónicas, como diabetes, hipertensão, obesidade, insere-se nesse contexto determinante. A prescrição de exercício físico deve assumir uma importância idêntica à prescrição de um medicamento. A sociedade tem de ser “educada” de forma a alterar drasticamente os seus hábitos e o seu relacionamento com as instituições de saúde. A visão da saúde em Portugal tem de mudar, não se pode estar a gerir apenas na base do problema que surge no imediato. A sociedade está em mutação como está o mundo, e terá também de existir uma mudança de paradigma nos cuidados de saúde, priorizando os resultados para os utentes e a eficiência na alocação de recursos.
RFD – É justo/apropriado dizer-se que a Saúde é hoje a área mais dispendiosa para a população nacional?
RP – Atualmente, em Portugal, os custos com a saúde representam em determinados casos uma parte significativa do orçamento das famílias, especialmente se considerarmos os custos com medicamentos, consultas médicas, tratamentos e outras despesas relacionadas com a saúde que não são comportadas pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). É igualmente verdade que os portugueses tem feito um esforço acrescido na aquisição de seguros de saúde, no sentido de colmatar a ineficiência ou o défice de resposta do SNS. No entanto, considero que a par da saúde existem igualmente outras áreas conturbadas com impacto significativo no orçamento das famílias portuguesas, nomeadamente a habitação e a educação.
RFD – Durante o seu vasto trajeto profissional, quais foram os principais entraves com que deparou?
RP – No decorrer do meu trajeto profissional, confrontei-me com inúmeros e diferentes entraves, sendo a autonomia da profissão aquele que persiste ao longo destes 24 anos enquanto fisioterapeuta. Os primeiros anos de atividade profissional foram conturbados, na medida em que a minha formação académica foi pautada pela nossa afirmação como profissionais autónomos com uma componente científica muito forte. Quando iniciei a minha prática profissional senti uma incongruência entre a formação académica e a prática. Vivenciei períodos de alguma frustração no início da minha carreira, pois sentia que poderia fazer mais e melhor. A máxima “fazer das fraquezas forças”, acabou por ser um fator motivacional preponderante para continuar a apostar na minha formação e aprimorar as minhas “skills” técnicas e pessoais, sempre no sentido de dar uma resposta mais cabal aos desafios que foram surgindo gradualmente.
RFD – Quando abraçou o projeto de abertura de uma Clínica, quais foram os propósitos maiores dessa ideia?
RP – A abertura de um espaço próprio, quer seja em gabinete ou uma clínica, é consequência do nosso crescimento enquanto profissionais e da nossa autorreflexão. A abertura da Clínica Athletika surgiu da conjugação de sinergias de três amigos ligados à área do desporto de alta competição. Num dos nossos momentos de tertúlia, surgiu a ideia de transpor para a sociedade em geral o conceito de alta competição. Um dos principais objetivos residiu na dinamização do conceito de alta competição com a definição de objetivos e “timings” personalizados com o utente, à semelhança do que se faz com os atletas de alta competição. Um outro propósito reside no nosso próprio crescimento enquanto profissionais de saúde. Embora existam “guidelines”, normas, o nosso espaço reflete a nossa forma de atuar e de estar enquanto profissionais.
RFD – Quais são as memórias mais saborosas que o Ricardo guarda dos seus primeiros anos como fisioterapeuta?
RP – O prazer da descoberta! Enquanto aluno recordo os estágios curriculares nos quais havia sempre um professor a tutelar a minha intervenção, fazendo-me sentir que o resultado final estava assegurado pela experiência de quem (me) tutelava. Já enquanto profissional recordo o primeiro utente que cuidei, pois é sempre aquela pessoa que nunca mais esquecemos ao longo da nossa vida. Como deve compreender, torna-se muito gratificante perceber que conseguimos ajudar essa pessoa a ter uma melhor qualidade de vida. Uma outra memória que guardo com nostalgia tem a ver com a minha primeira presença enquanto fisioterapeuta nos Jogos Olímpicos (Beijing, 2008). Equiparo a minha felicidade e satisfação à felicidade de uma criança na sua primeira visita a um parque de diversões. Ficava fascinado a olhar, a contemplar tudo e a perceber se o que estava a viver era real. Indiscutivelmente, experienciei emoções positivas e, sobretudo, tive o privilégio de conviver de perto com alguns dos meus ídolos.
RFD – E aquelas mais dolorosas?
RP – Um dos momentos mais dolorosos aconteceu nos Jogos Olímpicos de Pequim, precisamente. Considero que foi um momento de aprendizagem e de crescimento pessoal e profissional, pois percebi que também poderia ter contribuído de outra forma para aquela situação. Estávamos perante a possibilidade de um dos atletas, dada a sua condição física na altura, se afirmar como candidato às medalhas. Mas o caminho até aquele momento tinha sido bastante duro, com muitas horas de trabalho, tanto da minha parte como do atleta, não tendo sido por acaso que na preparação para os Jogos muitos problemas físicos foram progressivamente debelados. No momento competitivo, os índices físicos estavam como deveriam estar naquele momento. Só que o que estava idealizado não se verificou. Nesta fase como profissional deveria ter tido um papel mais estabilizador. Nesse dia chorei, por ver a dor no atleta e sentir que poderia ter ajudado de outra forma.
RFD – Quais são as suas principais referências no plano profissional? Quem foi, genericamente, mais importante para si?
RP – Durante a minha formação académica na Escola Superior de Saúde do Alcoitão, tive o privilégio de conhecer dois professores que me marcaram pelo seu nível de conhecimento científico e prático, mas acima de tudo pela sua forma de estarem no Ensino e a simplicidade com que transmitiam o seu conhecimento, evidenciando uma postura tão natural como pedagógica. Enquanto aluno e profissional, esses dois professores foram as minhas principais referências na Fisioterapia. O professor João Vasconcelos Martins, com o seu ponteiro de madeira, fazia a leitura do movimento do corpo humano como ninguém e tornava as aulas inesquecíveis. A professora Isabel Rasgado Rodrigues, que no início parecia ostentar uma postura austera, no decorrer do curso revelou-se uma autêntica “mãe”.
RFD – De que forma consegue conciliar a intensa atividade profissional com o lado familiar? Pode dizer-se que é a “fatura” mais alta que paga?
RP – A família acaba muitas vezes por ser prejudicada em virtude da minha atividade profissional. Na área do desporto ocorrem muitos eventos tanto a nível nacional como internacional, o que implica prolongadas ausências. Em termos de dinâmica familiar temos delineado estratégias, por forma a mitigar os períodos de ausência, principalmente junto dos meus filhos.
RFD – Tem sido reconhecido como peça fundamental no êxito mundial alcançado por algumas das principais figuras do atletismo português. No que baseou o seu trabalho no acompanhamento de figuras como Nélson Évora e Pedro Pablo Pichardo, por exemplo?
RP – Sou um privilegiado por ter acompanhado dois campeões olímpicos, Nélson Évora em 2008 e Pedro Pichardo em 2021. Estive com eles na fase de preparação e festejámos em conjunto a conquista do título olímpico. O atletismo é uma modalidade em que a característica individual é muito acentuada. O atleta treina arduamente, de forma a elevar os níveis de rendimento e a conquistar aquilo a que se propõe. Os bastidores de cada uma destas conquistas revelam contextos completamente distintos. Devo dizer que não me considero uma peça fundamental no êxito de cada um deles, integro uma estrutura multidisciplinar que acrescenta valor para a melhoria do treino e da performance. Ou seja, o meu trabalho específico vai ao encontro das necessidades do atleta, com o intuito de perceber o plano de treino, onde poderá existir mais vulnerabilidade física dado o aumento de volume de treino ou de competição, etc, etc. O segredo reside em tentar antecipar o problema e não atuar sobre o problema.
RFD – E de que forma o próprio Ricardo se resguarda e se prepara para ser o grande suporte de campeões?
RP – O fisioterapeuta tem de ser, como costumo dizer, um porto de abrigo em muitas situações, principalmente nos momentos competitivos. É uma vantagem quando já se trabalha diariamente com os atletas e já conhecemos o seu modus operandis. Temos de ter noção do ambiente que nos rodeia, o que se está a passar com o atleta naquele momento específico, principalmente na fase da pré-competição, de forma a criar um ambiente adequado à entrada do atleta na pista. No atletismo somos das últimas pessoas a ter contato físico e verbal com o atleta antes do momento competitivo, por isso é muito importante a forma como interagimos.
RFD – Como gosta de ocupar os seus (raríssimos, imagino) tempos livres?
RP – Tento privilegiar os momentos em família, planear atividades com a minha esposa e os meus filhos, fazendo sempre uma “assembleia familiar” em que todos dão o seu contributo em termos de planeamento de atividades e lazer. Sendo natural de Reguengos de Monsaraz, e como bom alentejano que sou, adoro estar sentado a uma boa mesa, rodeado da minha família e amigos. Sempre que tenho possibilidade é um momento que tento recriar nos meus tempos livres.
RFD – Gostaria de recomendar uma ou outra diretriz aos jovens que se apaixonaram pela Fisioterapia?
RP – Faço parte da transição da Geração X para “Millennials”, onde vivemos in loco a explosão tecnológica e também mudanças sociais significativas. A partilha e a aquisição de novos conhecimentos não era tão rápida como nos dias atuais. A geração Z que me precede agrega os jovens que vão iniciar as suas carreiras como fisioterapeutas, onde a componente digital e as redes sociais estão na base do sucesso. Alertaria que o sucesso profissional não é instantâneo nem imediato. A construção do conhecimento e a sua maturação têm um “timing” próprio, por isso não desistam com o fato de o tempo parecer ser longo para o sucesso.
RFD – Reconhecendo-se a importância mediática do futebol e dos grandes clubes, o que guarda de mais marcante da sua etapa ao serviço do Sport Lisboa e Benfica?
RP – Foi uma experiência enriquecedora, da qual guardo muitas memórias gratificantes, face aos grandes momentos vividos dentro da estrutura do futebol do Sport Lisboa e Benfica. Devo confessar que tive contato com uma estrutura que me surpreendeu, atendendo à sua impressionante dimensão. O Benfica está dotado de infraestruturas e recursos humanos muito acima da média, encontrando-se preparado para competir com os maiores clubes do Mundo.