ENTREVISTA
José Luís Rocha
Fisioterapeuta
José Luís Rocha
Fisioterapeuta
Primeiro e único fisioterapeuta do quadro do Instituto de Desporto de Portugal; 65 anos anos de idade; Coordenador do Setor de Fisioterapia do Centro de Medicina Desportiva de Lisboa; Direção da Clínica da Mão/Aquavida
RFD – É possível estabelecer um ponto de partida para uma vida consagrada ao desporto e à fisioterapia?
JOSÉ LUÍS ROCHA – Não é fácil, reconheço, mas talvez possamos começar pelo GUDA, o Grupo União Desportiva de Alcabideche. Estava em Alcoitão a tirar o curso e simultaneamente jogava à bola no GUDA. Era guarda-redes, os miúdos aleijavam-se e eu ia prestando assistência. Seguiu-se o Estoril Praia porque era no tempo em que as equipas tinham reservas e o Estoril não tinha um número suficiente de guarda-redes. Penso que foi o falecido José Torres quem falou comigo para me juntar ao Manuel Abrantes (colega cinco estrelas, era o guarda-redes principal), ao Ferro e ao Paulino. Mas como tinha treinos de manhã e à tarde e estudava… optei pelos estudos.
Através do João do Rosário houve a possibilidade de continuar no futebol no 1.º Dezembro e quando vou para lá saiu-me na rifa um estágio em Montemor-o-Novo, sempre no âmbito do curso de Alcoitão. O meu supervisor de estágio era o Manuel Rebelo, curiosamente também diretor do União de Montemor, na altura a disputar a II Divisão. Tinha como treinador o Mitó e ao terceiro dia colocam-me sobre a mesa uma proposta de contrato. Sabe quanto me ofereceram? 90 contos!!! Era muito dinheiro, fiquei maluco! Mais tarde percebi que na verdade recebia só 35 ou 40… Só fiz uma época. Acabei por ter 14 valores como nota final de estágio e desisti de andar de um lado para o outro à conta do futebol. Inclusivamente, houve uma altura em que treinava no Estoril às terças e quintas-feiras e jogava em Montemor ao domingo. Até me vinham buscar numa carrinha mas, cansava-me muito, perdia rendimento. Terminei com o futebol, mas ganhei o meu dinheirinho.
RFD – Ao contrário do que é tradicional, para guarda-redes teve uma carreira curta…
JLR – Olhe, para lhe dizer a verdade, no futebol preocupavam-me e interessavam-me mais as lesões do que tudo o resto. Acabei o curso em 1978 e Alcoitão convidou-me para trabalhar na pediatria, um pouco à semelhança da experiência entretanto recolhida no Egas Moniz . Em Alcoitão havia uma equipa de basquetebol em cadeira de rodas e surgiu a oportunidade de fazer outro curso, em musculosquelético. No domínio da traumatologia fui adquirindo mais conhecimentos e o Fernando Santos, na altura treinador do Estoril, juntamente com o diretor clínico, Dr. Carlos José Quaresma, faz-me um convite para ir para a I Divisão. Não podia recusar. Estive seis anos com o Fernando Santos. Em conjunto com o Paulo Araújo e o Raul Oliveira introduzimos em Portugal os “tapes”, o elastoplast, as ligaduras… Se reparar, a partir daí, os punhos, os dedos e os pés ligados começaram a vulgarizar-se na atividade desportiva. E as práticas complementares ofereceram-me um gradual enriquecimento.
RFD – Isso explica ter sido requisitado para várias modalidades?
JLR – Terá sido sempre por um conjunto de razões. Mas já que fala nisso, posso relembrar que também participei no projeto olímpico com o judo, no âmbito da preparação dos Jogos de Seul, em 1988. Por decisão pessoal, não fui aos Jogos, mas aí tratou-se de uma questão puramente relacionada com o número de participantes da delegação portuguesa. Conversei com o Dr. Manuel Passarinho e chegámos à conclusão que era melhor eu ficar e fazer ele o acompanhamento médico da comitiva. Ele depois compensou-me com duas operações.
RFD – … O Zé Luís vai ter de explicar isso… Que estória é essa?
JLR – São episódios da minha vida muito a posteriori. Há quatro anos fui operado pela primeira vez à coluna cervical e passado um ano fui a segunda vez.
RFD – … Mas estava a fazer alguma coleção?
JLR – Nada disso, simplesmente desrespeitei as recomendações do doutor e depois da primeira operação voltei a trabalhar sem grandes cuidados e tive de voltar a ser intervencionado. O Dr. Manuel Passarinho teve que fazer uma reconstituição das vértebras C6 e C7 com o meu próprio osso! Recolheu osteófitos na minha coluna para arranjar material suficiente para essa operação. Cá mais em baixo na região lombar também tenho três hérnias, mas o doutor diz que para já não opera. Tenho de me aguentar. Quando estou apertado com dores o Ft. Paulo Félix dá-me umas massagens e… pronto. Fazia caça submarina, tinha uma moto-quatro e o Dr. Manuel Passarinho só ficou descansado quando lhe disse que já tinha vendido a moto!
RFD – Tendo ajudado a curar tantas lesões de tanta gente, como paciente foi essa a situação mais delicada que atravessou?
JLR – Penso que a mais delicada aconteceu quando fui diagnosticado com polipose degenerativa familiar. Estava ao serviço da seleção portuguesa de andebol no estágio para o Campeonato do Mundo no Japão. Felizmente, fui logo operado ao tumor no Hospital dos Capuchos e quando disse ao Dr. João Paulo Fernandes que queria ir ao Campeonato do Mundo, ele nem queria acreditar no que estava a ouvir… “Oh Zé, faltam-lhe quase dois meses de quimioterapia, isso é impossível! Esqueça!” Foram as primeiras palavras do doutor, mas eu não desisti. “Faça lá o que fazer, arranje maneira de eu ir e eu vou!”, respondi-lhe. Passados três dias disse-me: “Se estás assim tão determinado, vais fazer 24 horas de quimioterapia por dia!” Não foram 24, mas foram 12 horas. Durante quase um mês fez quimioterapia no Hospital dos Capuchos e, como deve calcular, aquilo deitou-me um pouco abaixo. Não falava com ninguém, o quarto sempre escuro. Mas tudo acabou por correr bem. O Dr. João Paulo Fernandes falou com o Dr. Pereira de Castro, que era o médico da seleção, e como tinha muita confiança em ambos, lá foi o Zé Luís para Kumamoto…
RFD – Então a experiência foi particularmente gratificante…
JLR – … Depende do ângulo. Num certo sentido, claro que sim. Noutro… nem tanto. Acabou por ser algo complicado. É um país com uma civilização completamente diferente, com hábitos muito diferentes. O clima era bastante húmido. Como os treinos eram superexigentes, consumíamos litros e litros de água. Admito que seja uma questão de adaptação. Mais tarde, houve uma fase em que estive quatro semanas sozinho no Japão com o judoca Pedro Soares após ele ter sido operado pelo Dr. Manuel Passarinho. Diziam que ele já não teria hipóteses nenhumas de voltar a competir, mas depois do trabalho que fiz, ele conseguiu retomar. E esse trabalho e esse treino só podiam ser feitos no Japão, era o único país no mundo com condições para tal.
RFD – Pode dizer-se que o andebol acabou por ser a principal modalidade na sua carreira?
JLR – Acho que sim. E nem sequer foi a primeira modalidade, conforme já lhe disse. Tudo começou quando me dividia entre o futebol do Estoril e o hóquei no Paços de Arcos. Mas no hóquei praticamente não há lesões, os atletas estão muito protegidos… levam umas boladas e mais nada… O andebol do Paço de Arcos estava na II Divisão e vi logo que era mais o meu terreno… Fiz contrato com eles, correu muito bem, só não subimos por pouco logo na minha primeira época. A seguir aos masculinos, aparece o andebol feminino, era treinador o falecido Fernando Jorge. E depois, em 1988 ingresso na seleção feminina de andebol a convite de Fátima Monge da Silva e do dr. Pereira de Castro. Na verdade, por proposta do Luís Santos, acabo por assumir o sector masculino e o feminino.
RFD – Quais são as estórias mais marcantes que guarda desses anos com o andebol?
JLR – Há tantos episódios…Olhe, apuramento para o Campeonato do Mundo, jogo com a Jugoslávia, em Montenegro… Abriu um hotel de propósito para albergar a comitiva portuguesa. Bom, lá vamos para o pavilhão fazer o
treino de adaptação. De repente, vejo o Donner de mãos na cabeça! O Victor
(Tchikoulaev) tinha acabado de fazer uma entorse de II grau. Era o nosso melhor jogador, toda a gente ficou angustiada. Eu andava sempre com uma manga pneumática no bolso, para imobilização, fazer compressão total… Socorri-me dela e pensei: “Se nos próximos 30 minutos diminuir o edema, estamos safos.” Passada meia hora, vejo o pé do jogador e fiquei surpreendido. “Oh Victor, isto deve ser da vodka, tens o pé quase normal”, até brinquei com ele.
O jogador tinha feito uma entorse em inversão, teria causado dano nos ligamentos anteriores e posteriores. O Dr. Pereira de Castro só dizia: “Zé, é contigo, depende de ti! Passei a noite inteira com o Victor e de manhã fizemos testes no corredor do hotel com ligadura funcional. Dizia-me: “Zé, não tenho nada, posso jogar.” Jogou e marcou o golo da vitória, num livre de 7 metros! Agora repare: a bola bate na barra, ele suspende e marca na recarga! Se não ganhássemos não iríamos ao Campeonato do Mundo. Tão simples como isso. Também tive outro caso com o Carlos Resende, subluxação do ombro esquerdo. Como a cápsula estava intacta, a parte ligamentar foi imobilizada e durante três dias, com ligadura funcional, o Carlos recuperou. Na recepção de bola tinha dores mas como era um fora-de-série, como jogador e como pessoa, lá jogou…
RFD – Na fase de recuperação, qual é o fator mais determinante?
JLR – A força de vontade. Acreditar. No Hospital dos Capuchos e no IPO fui várias vezes chamado para falar com os doentes terminais e punha-os a rir! Se acreditar em si próprio e no profissional que o está a curar, um atleta recupera oito dias antes do prazo estabelecido! Agora, se começa a pensar que nunca mais vai jogar ou saltar como antigamente, tudo se torna muito mais complicado.
RFD – E no andebol feminino, quais as situações mais melindrosas?
JLR – Nos femininos, a falecida Alice Leitão, num estágio em Tróia, desmaiou dentro de água.
Tinha subido a temperatura da banheira para 40 e tal graus e provocou uma vasodilatação, com quebra de tensão… Foi isso que contribuiu também contribuiu muito para a colocação de um pacemaker há três anos. Também tive uma situação em que Ana Isabel Sobral, num jogo na Islândia, leva um golpe que lhe parte os ossos do nariz. Mas pôs-se rapidamente de pé e só dizia que queria jogar. Tivemos que a pôr a jogar, mas só entrava para defender. Elas são muito mais corajosas do que eles, isso posso assegurar-lhe.
RFD – É mais fácil trabalhar com as atletas?
JLR – Não deve concluir isso. Aliás, é mais difícil. Escondem mais a lesão, mas em termos de dor resistem mais que nós. Só que ao esconder, aumentam a lesão. Em termos de recuperação dificultam muito as coisas. À parte isso, são exemplares. Eu só conseguia perceber as entorses dos dedos quando olhava para as mãos delas. Nunca diziam nada! Se fossem os homens, bastava uma coisa na unha… bem, nem vale a pena estar a contar… Claro, como em tudo, havia exceções e gente também muito valente. Ainda sobre o Victor (Tchikoulaev)… Uma vez na Ucrânia, um tipo acertou-lhe em cheio no olho. Bom, estou ali 10 minutos a fazer gelo ativo com ele, a rodar gelo sobre a zona e pergunto-lhe: “Vês bem?” E ele: “Vejo o suficiente para continuar a jogar!” E não é que ele continuou a jogar e fez uma exibição fantástica! Era um homem determinado.