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Entrevista com o Bastonário da Ordem dos Fisioterapeutas – Especialidades em Fisioterapia

A Revista de Fisioterapia Desportiva teve a oportunidade de entrevistar, em exclusivo, o Exmo. Sr. Bastonário da Ordem dos Fisioterapeutas, António Manuel Fernandes Lopes, sobre um tema de enorme pertinência – as especialidades em Fisioterapia. Nesta entrevista vemos respondidas várias questões sobre a temática das especialidades: a sua definição, as várias fases de estudo e criação do quadro de especialidades, várias questões sobre a atribuição do título de especialista e outros importantes esclarecimentos.


RFD (Revista de Fisioterapia Desportiva) – Quando falamos de especialização e de especialidades existem várias conceções, o que pode gerar alguma confusão. Afinal em que consiste a especialização profissional?

AMFL (Sr. Bastonário da Ordem dos Fisioterapeutas, António Manuel Fernandes Lopes)
A especialização é um processo de desenvolvimento, individual e coletivo, de uma profissão.
No plano da profissão, a “especialização” é um processo que está descrito, sociologicamente, como parte do desenvolvimento natural das profissões, em geral, à medida que os saberes e as práticas que lhes estão associados se desenvolvem e diversificam. Nesse sentido, a especialização será uma etapa natural do desenvolvimento da profissão de fisioterapeuta.
No plano individual, de cada fisioterapeuta, a “especialização” será também uma consequência natural do seu desenvolvimento profissional contínuo, à medida que evolui e acrescenta ao perfil de formação de base, com que iniciou o seu percurso profissional, novos saberes, e ganha competências clínicas acrescidas, para enfrentar e resolver situações mais complexas e em áreas mais específicas.


RFD – Então, nessa perspetiva, a especialização é um desenvolvimento natural das profissões?

AMFLSim, as áreas de especialidade ou de competência acrescida emergem do processo de especialização e, nesse sentido, consolidam o perfil profissional de base.
As profissões, através das respetivas entidades reguladoras, definem os domínios de especialização e criam os respetivos mecanismos de reconhecimento e certificação. Neste processo, definem as “áreas de especialidade” que serão formalmente reconhecidas como tal, e outras áreas em que será social e profissionalmente conveniente que exista uma certificação de “competências acrescidas”.
A especialização e a emergência das áreas de especialidade ou de competência acrescida estão associadas ao desenvolvimento e consolidação da disciplina científica, e ao surgimento de oportunidades de qualificação académica de nível superior (mestrado e doutoramento) e de investigação científica aplicada, em muitos casos associada a essas graduações mais elevadas.


RFD – De forma mais concreta, como podemos caraterizar, ou definir, a especialização profissional?

AMFLNos estudos consultados para a criação do quadro de especialidades da Ordem, a especialização é consistentemente
definida em termos de características técnico-científicas acrescidas, bem como de componente prática do exercício da profissão.
A experiência e o conhecimento numa área de especialização são considerados essenciais e unanimemente reconhecidos.
Todos os documentos mencionam que a especialização implica um nível superior de conhecimento, competências e experiência aplicada, em comparação com um fisioterapeuta sem especialização.

Numa visão que complementa as definições mais técnico-científicas, surgem referências ao facto de a especialização corresponder a necessidades societais e económicas.

Na perspetiva da World Physiotherapy (WP) a especialização não restringe o exercício profissional do designado especialista, nem impede a intervenção numa área de especialidade por parte do não especialista.
As áreas de especialidade estão, assim, dentro do perfil profissional do fisioterapeuta, e, nessa linha de pensamento, são, ou deveriam ser, áreas e conhecimento dos fisioterapeutas, desde a sua formação inicial.

Noutro plano, há ainda que distinguir entre especialização e especialidade profissional.
Importa clarificar que para a obtenção do título de especialista está implícita a especialização, mas nem toda a especialização conta implicitamente para a obtenção do um título de especialista.


RFD – Mas há várias entidades que atribuem títulos de especialista. Isso não aumenta a confusão?

AMFLSim, existe uma variedade de entidades, em diversos contextos, que podem emitir o “título de especialista” ou usar o termo “especialidade” e/ou “especialização”, o que permite que um mesmo profissional possa apresentar-se publicamente utilizando um ou vários títulos que legalmente possui.
Vejamos os três principais exemplos:
1 – Na carreira de Técnico Superior de Diagnóstico e Terapêutica (Decreto-Lei n.º 111/2017, de 31 de agosto) existem categorias que incluem a designação de “especialista”;
2 – Na carreira académica do ensino politécnico, existe a possibilidade de obter o “título de especialista” (Decreto-Lei n.º 206/2009, de 31 de agosto);
3 – No sistema de graus e diplomas do ensino superior (Decreto-Lei n.º 74/2006, de 24 de março) há referência a “cursos de especialização”, e é claramente a utilizado o termo “especialidade” associado à definição das áreas específicas dos mestrados e doutoramentos.
Nessa base, pode haver um fisioterapeuta AAAA BBBB que estando integrado na carreira de TSDT, detenha a categoria de Especialista Principal, concluiu um mestrado em Fisioterapia na área de especialização X, e possui o título de especialista em Fisioterapia pelos Institutos Politécnicos de Z,W e K, e, por fim, foi-lhe atribuído o título de especialista em QQQQ pela Ordem dos Fisioterapeutas.


RFD – E então como é que o fisioterapeuta que deu nesse exemplo se pode, ou deve, apresentar?

AMFLO importante é que ele enquadre claramente cada título que possui.
No exemplo dado poderia ser:
AAAAA BBBB
Fisioterapeuta, Cédula da Ordem dos Fisioterapeutas nº XXXXX
Especialista Principal (na carreira de TSDT)
Mestre em Fisioterapia, na área de especialização X
Título de especialista em Fisioterapia pelos Institutos Politécnicos de Z,W e K
Especialista na área QQQQ pela Ordem dos Fisioterapeutas


RFD – Como decorreu o processo de estudo e criação do quadro de especialidades pela Ordem dos Fisioterapeutas?

AMFLFoi um processo faseado, previsto no estatuto da Ordem, que foi iniciado em dezembro de 2020, ainda pela Comissão Instaladora, e que decorreu ao longo de quatro anos, pelo que também se pode dizer que foi um processo demorado, embora condicionado nesta fase final, pelos prazos impostos pela revisão do estatuto da Ordem.
Foi um processo que decorreu de forma participada, com diferentes interlocutores, e diferentes metodologias, em função das diversas fases, e que contou sempre com a divulgação pública, embora na área reservada aos membros da Ordem, dos vários documentos produzidos.


RFD – Referiu que foi um processo faseado. Pode dar uma ideia geral dessas fases?

AMFLForam definidas oito fases.
A fase 1 consistiu na revisão narrativa da literatura, a qual ocorreu entre dezembro de 2020 e novembro de 2021 e deu origem ao documento partilhado na área reservada dos membros da Ordem intitulado “Recomendação sobre o Processo de Especialização para a Profissão de Fisioterapeuta”.
Este documento contou com o contributo de mais de 40 Fisioterapeutas ligados aos grupos de interesse da APFisio.
Estes trabalhos decorreram ainda no período da Comissão Instaladora.

A fase 2 -consistiu na análise das recomendações do primeiro estudo e no alargamento da consulta a outros interlocutores externos à profissão, que ocorreu entre 2022 e 2023. Esta atividade envolveu uma empresa de estudos de mercado que elaborou um relatório, que foi igualmente partilhado na área reservada.

A fase 3 consistiu na consensualização das linhas gerais de organização da proposta de quadro de especialidades, e ocorreu em 2023 e no primeiro semestre de 2024.
Nesta fase foi apresentado um questionário aos dezassete Grupos de Trabalho Temáticos nomeados para assessorar a Direção, processo que deu origem a um “Relatório da consulta relativa à criação do quadro de especialidades em Fisioterapia -Análise de conteúdo das pronúncias dos grupos de trabalho”

A partir destas respostas e dos trabalhos das fases anteriores foi elaborado o documento intitulado “Estudo prévio à criação de um quadro de especialidades para a profissão de fisioterapeuta”.
Este documento, que foi submetido à apreciação do Conselho Geral em junho de 2024, apresenta uma proposta final de com sete dimensões e os respetivos critérios de verificação de cada uma, que devem ser cumpridos para a criação de uma área de especialidade pela Ordem dos Fisioterapeutas.

A fase 4 consistiu na elaboração, com base nos trabalhos das fases anteriores, da proposta concreta do quadro de especialidades (regulamento de especialidades profissionais) e respetiva discussão pública.

A proposta foi elaborada com o apoio dos Grupos de Trabalho Temáticos, em particular no que respeita aos aspetos mais específicos, e depois de analisada pelo Conselho Geral, foi colocada em consulta pública por trinta dias. Os contributos recebidos foram analisados e tomados em consideração. A proposta revista viria a ser aprovada pelo Conselho Geral em janeiro de 2025 e submetida ao parecer vinculativo do Conselho de Supervisão.
A proposta, depois de aprovada pelos órgãos competentes da Ordem, terá de ser envida ao Ministério da Saúde para homologação antes do final de fevereiro de 2025.

Estão ainda previstas mais 4 fases
Fase 5
Elaboração de caderno de encargos para sistema informático de suporte administrativo Definição dos requisitos a que deve corresponder o sistema informático de suporte administrativo ao processo de candidatura, inscrição e emissão do título de especialista.

Fase 6
Homologação pelo membro do governo responsável pela área da saúde.

Fase 7 Criação das comissões instaladoras dos colégios de especialidade. Sempre que se forme um colégio de especialidade profissional, a direção nomeia uma comissão instaladora composta por um presidente, um secretário e três vogais, com prazo para elaborar uma proposta das condições de acesso e um regulamento interno e eleitoral a submeter à aprovação do conselho geral.

Fase 8 Entrada em funcionamento dos colégios de especialidade.
Cada colégio de especialidade profissional é dirigido por um conselho de especialidade, composto por um presidente, um secretário e três vogais eleitos por quatro anos pelos membros da respetiva especialidade, de acordo com regulamento próprio aprovado pela direção.


RFD – Passando agora à proposta já aprovada pelo Conselho Geral, quais são os requisitos exigidos para se obter o título de especialista?

AMFLComo pré-requisitos mínimos para iniciar o processo de candidatura, o candidato deve ter mais de 10 anos de exercício profissional como Fisioterapeuta e simultaneamente ter pelo menos 3 anos de exercício em áreas ou contextos específicos relacionados com a área a que se candidata.
Para além da experiência clínica, na área da especialidade, requer-se que tenha conhecimentos aprofundados na área em questão, para além dos obtidos na formação inicial para acesso à profissão. Estamos a falar da frequência de formação profissional ou académica mais avançada.
Para além de ter mais experiência e mais conhecimentos na área, requer-se que o especialista tenha um perfil de liderança no desenvolvimento da profissão devidamente reconhecido


RFD – E como será organizado o processo de candidatura e de atribuição do título de especialista?

AMFLO processo de candidatura tem três fases.
A primeira consiste numa avaliação sumária (triagem) do respetivo desenvolvimento profissional, e serão consideradas três dimensões, complementares:
1 -A experiência clínica, na área da especialidade;
2 – A formação académica e profissional, na área da especialidade, obtida após a formação inicial que deu acesso à inscrição na Ordem e obtenção do título profissional;
3 -A atividade docente e/ou de promoção de divulgação científica e técnica, e/ou atividades de gestão e coordenação, em qualquer dos casos, sempre com relação à área da especialidade.
Para cada atividade de desenvolvimento profissional contínuo, existe uma determinada pontuação, e dessa forma, se o candidato provar deter o mínimo de pontos definido para cada uma dessas três dimensões, pode passar à fase seguinte, que consiste na frequência, com aproveitamento, de um seminário de deontologia promovido pela Ordem.

Com a aprovação neste seminário, poderá então candidatar-se à terceira fase, que consiste na prestação de provas públicas, perante um júri qualificado.


RFD – E já estão definidas essas provas públicas?

AMFLO regulamento, nesta fase, apenas refere que as provas públicas contemplam a discussão do perfil curricular do candidato e avaliação de conhecimentos teórico-práticos da área de especialidade.
Os detalhes serão definidos posteriormente, nos termos a aprovar pela Direção, sob proposta do colégio da especialidade.


RFD –Qual será o perfil de competências, esperado, de um especialista?

AMFLForam identificadas competências transversais, comuns a todas as especialidades, e competências mais específicas, por área de especialidade, apresentadas como anexos ao regulamento aprovado com base no regulamento do ato do Fisioterapeuta.
Para além dos conhecimentos e competências na área da especialidade, o especialista terá de ter competência para a resolução de problemas mais complexos, em ambientes ou contextos menos estruturados e contribuir para uma reflexão crítica sobre as práticas profissionais e saber construir novas soluções apoiadas na melhor evidência científica disponível.
O perfil de competência deve corresponder, no mínimo ao do nível sete do Quadro Europeu de Competências (EQF7)


RFD – O título de especialista vai ter de ser renovado periodicamente?

AMFLSim. A necessidade de se manter permanentemente atualizado é uma exigência ética, traduzida explicitamente no código deontológico.
Cada vez mais, essa exigência tem sido transformada numa exigência legal, com consequências para quem não cumprir.
Nessa base a obrigatoriedade da renovação dos títulos profissionais é uma prática claramente recomendada na literatura.
A diferença reside no período para essa renovação, que varia essencialmente entre os 5 e os 10 anos.
A proposta agora aprovada definiu 7 anos, num compromisso entre aqueles dois limites.


RFD – Em que áreas vai ser possível obter o título de especialista?

AMFLDe acordo com o regulamento aprovado, a Ordem cria, desde já, e atribui os seguintes títulos de especialista nas áreas de especialidade:
a) Cardiorrespiratória
b) Músculo-esquelética
c) Neurologia
Estas foram as únicas áreas que se considerou cumprirem inequivocamente os critérios estabelecidos na proposta de regulamento, contudo, o regulamento prevê, e deixa em aberto sem limitações temporais, ou seja, permanentemente em aberto, a criação de novas áreas de especialidade.
Estamos certos de que isso acontecerá em breve.


RFD – E quais são as perspetivas de criação de novas especialidades?

AMFLA criação de novas áreas de especialidade está dependente do claro cumprimento das dimensões e os indicadores/critérios que constam do anexo II -CRITÉRIOS PARA OPERACIONALIZAÇÃO DE UMA ÁREA DE ESPECIALIDADE.
De entre esses critérios destacam-se dois:
– Ser referente a uma área de e do conhecimento geral de todos os fisioterapeutas, que nomeadamente “seja abordada minimamente no ciclo de formação inicial em fisioterapia e cumulativamente, ter uma abordagem teórica e em educação clínica num ciclo de educação em fisioterapia (licenciatura e/ou mestrado), por forma a representar uma área facilmente reconhecida por todos os fisioterapeutas e tenha sido abordada em teoria e educação clínica.”
– Ser dirigida a condições de saúde ou fases do ciclo de vida.

A Direção já se comprometeu a abrir um procedimento para identificação das áreas que se considere estarem em condições de evoluir no sentido da apresentação de novas candidaturas à criação de uma especialidade.
Simultaneamente vai proceder à revisão do documento “Referencial da Formação Inicial”, com o envolvimento das Instituições de Ensino Superior (em linha com o desenvolvimento do processo de criação de um “European common framework”), para clarificar as exigências do perfil de formação.


RFD – Desejaria abordar mais algum pormenor?

AMFLSim. Gostaria de sublinhar que a proposta de Regulamento da criação do quadro de especialidades, foi acompanhada da apresentação das propostas de criação dos sistemas de suporte à sua implementação, que têm vindo a ser preparados, nomeadamente:
– O Sistema de acreditação e avaliação prévia da oferta formativa após formação inicial, que permita certificar e valorizar (atribuir créditos – pontuação) o desenvolvimento profissional contínuo;
– O Sistema de creditação (atribuir créditos – pontuação) de ações formativas (que não tenham sido previamente acreditadas pela Ordem), ou de outras atividades de desenvolvimento profissional, passiveis da atribuição de créditos de desenvolvimento profissional contínuo.
– O Portfolio individual de registo do desenvolvimento profissional contínuo, a criar na área reservada do site da Ordem.
Será importante perceber que a introdução integrada destes sistemas, já aprovados, vai ser complexa e vai exigir um desenvolvimento das estruturas informáticas e de recursos humanos, e por isso vai levar também o seu tempo a implementar. Mas todo o processo está a ser feito de forma consolidada e cautelar.

O caminho faz-se caminhando, mas com passos certos e seguros. Dar segurança, em especial aos utilizadores de serviços de fisioterapia, é a principal função de uma entidade reguladora, como é a Ordem dos Fisioterapeutas.