ENTREVISTA
Ft. António Lopes
RFD Nº05
António Lopes
Fisioterapeuta
Fisiolopes
Angra do Heroísmo
Ilha Terceira – Açores
António Lopes, 40 anos de carreira. O açoriano que podia ter dedicado toda uma vida ao judo explica como conseguiu na área da saúde estabelecer uma marca e ser pioneiro na ilha Terceira.
“A fisioterapia é para quem precisa e não para quem quer”
REVISTA DE FISIOTERAPIA DESPORTIVA – É possível definir um momento marcante na sua vida e influenciador da vasta carreira como fisioterapeuta?
ANTÓNIO LOPES – – Para ser completamente sincero, não sei se consigo identificar um momento assim, tão decisivo como isso. O que devo confessar é que desde muito novo senti uma espécie de apelo, de interesse por esta área. Isso acho que posso dizer. Gostava muito de jogar futebol nos meus tempos de escola primária e houve um dia em que despertei para a minha primeira lesão… Era uma outra realidade… Jogávamos num campo terraplanado, descalços, as balizas eram feitas de madeira e num despique mais acidentado com outro rapaz, levei um pontapé que me deixou o terceiro dedo do pé um pouco mais deslocado. Mas logo na hora tratei de o endireitar e penso que foi nessa altura que percebi como era importante ter uma profissão ligada à saúde e que pudesse, no fundo, contribuir para ajudar os outros.
RFD – A partir daí foi mais fácil fazer as suas escolhas do ponto de vista académico?
AL – Sim, comecei a ter as coisas inteiramente definidas. A partir do quinto ano do liceu já estava direcionado para exercer como professor de Educação Física e inscrevi-me no primeiro curso do ISEF, o antigo INEF. Eram cinco anos de licenciatura e eu fiz o bacharelato à noite. Durante o dia frequentava a Escola do Alcoitão e no terceiro ano de Alcoitão até já estava dedicado às aulas de judo no ISEF, que passou a ser designado como Faculdade de Motricidade Humana.
RFD – Então o judo competia claramente com a formação profissional…
AL – Não, nada disso (risos)… Mas preenchia-me bastante. É uma modalidade que gostei sempre de praticar. E tentava sempre conciliar as minhas obrigações para ter tempo para o judo. Como deve imaginar, não era fácil. Sobretudo a partir do momento em que comecei a solidificar a minha formação. A 25 de julho de 1980 concluí o curso de Educação Física e logo aí deparei com um ano de estágio que tinha de ser cumprido em vários lugares, inclusive fora de Lisboa, como foi o caso de Vila Franca de Xira. Mas, basicamente, o meu estágio foi distribuído pelo Alcoitão, pelo Hospital Egas Moniz e pela companhia de seguros Tranquilidade, ali na Avenida da Liberdade, que foi o sítio que me deixou recordações mais caricatas.
RFD – Mais caricatas em que sentido?
AL – Olhe, em primeiro lugar, trabalhava praticamente só com mulheres (risos)… E depois deparava-me com um ou outro doente que de doentes não tinham nada. Queriam ir para a fisioterapia sem nenhum quadro clínico que o recomendasse. A indicação que traziam não correspondia a nenhum género de lesão. E a fisioterapia é para quem precisa, não é para quem quer! Lembro-me de um sujeito que entrou no gabinete de canadianas a dizer que tinha uma lesão no joelho, mas efetivamente não revelava problema algum, nem de natureza articular, nem ligamentar, rigorosamente nada! Disse-lhe logo que ele não precisava de canadianas e mandei-o ir almoçar pelo próprio pé. E ele claro que foi, tranquilamente. Uma outra vez apareceu-me um senhor que dizia que não podia ir trabalhar porque tinha um problema num dedo… Mas não era nada de limitativo, tratava-se de uma coisa mínima, sem relevo. Isto no fundo contrabalançava com os problemas reais.
RFD – Algum mais saliente, que se recorde agora?
AL – Posso referir o caso de um senhor que tinha uma lesão significativa na anca, uma senhora com um problema num joelho, entre vários casos, claro. Também é verdade que nessas situações acabamos por ver o lado melhor de algumas pessoas. O estágio não era remunerado, mas certos doentes, reconhecendo o trabalho que fazíamos com eles e toda a nossa dedicação, no fim do curso faziam questão de demonstrar a sua gratidão. Um senhor que era gerente de uma empresa de conservas de peixe ofereceu-me para aí uns 20 quilos de latas de atum, outro apareceu-me com cinco garrafões de vinho, uma senhora deu-me uma dúzia de ovos de pata, enfim, gestos que me marcaram e que contribuíram para viver uma experiência muito boa.
RFD – E já agora, qual foi a nota final?
AL – Tive a felicidade de concluir com uma média de 19,6 valores, o que foi ótimo para este judoca forte na altura (risos)… Mas gostaria de reforçar que em todo o estágio aprendi muito e sobretudo aprendi que o tempo do fisioterapeuta deve ser guardado para quem precisa. Retive também muito disso com a Professora Isabel Souza Guerra, no Egas Moniz. Foi uma ótima professora, na linha do que beneficiei com o Professor José Costa Branco, embora aqui já estejamos circunscritos e a falar outra vez do judo, concretamente quando estava no ISEF.
RFD – Como judoca, quais foram as etapas mais gratificantes?
AL – Falamos de uma modalidade em que é possível descobrirmos muitas vitórias no plano pessoal além dos títulos propriamente ditos. Também tive a sorte de ganhar 19 medalhas, fui duas vezes vice-campeão nacional e ganhei uma Taça, representei Lisboa nos Açores, veja lá (ndr: António Lopes é açoriano), o CDUL na Bulgária, fui preletor dos cursos de treinador, ajudei na elaboração de um livro ou dois, fiz uma tese sobre judo, fui duas vezes treinador nacional quando o Professor Monge da Silva se mudou para Portimão, enfim, tudo isso junto me permitiu tirar o máximo partido da modalidade e de mim próprio. Por isso digo com algum orgulho que devo muito à modalidade.
RFD – Há pouco referia essa particularidade de ter representado Lisboa nos Açores enquanto judoca. E enquanto fisioterapeuta, quais foram as particularidades que mais o marcaram quando regressou à Terceira para se dedicar a esta área?
AL – Essas primeiras etapas não foram fáceis. Temos que nos situar num tempo em que as pessoas, nomeadamente no campo da Educação Física, padeciam de um grande desconhecimento. E depois, como acontece se calhar em muito sítios, havia que combater os vícios instalados. A ignorância e a dificuldade em implementar uma educação física apropriada obrigou-me a canalizar toda a minha vontade e toda a minha paixão para começar a mudar as coisas. Com alguma competência à mistura, se me permite. Mas felizmente, com muito trabalho, as coisas foram gradualmente mudando e penso ter contribuído em parte para essa alteração. E em respeito pela verdade, devo dizer que no quadro específico da fisioterapia, quando regressei à ilha, eu e a minha equipa fomos absolutamente pioneiros. Não havia profissionais estabelecidos, pura e simplesmente. Sim, aí podemos falar na escola António Lopes, até porque tive o privilégio de selecionar muito bem as pessoas que trabalhavam, e trabalham comigo, e esse rigor na admissão de pessoal também faz toda a diferença. Comigo só trabalham os melhores, respeitando todos os profissionais.
RFD – Na sua opinião, qual foi a maior evolução da fisioterapia em Portugal?
AL – Mudou muito! Hoje somos mais de 15 mil profissionais, começa por aí. Porque também foram criadas mais escolas, no Porto e em Coimbra, além de Lisboa. A área da investigação também passou a ser privilegiada, o domínio científico impõe-se cada vez mais nas nossas abordagens e julgo que todos fazem um esforço permanente em nome da atualização dos conhecimentos. Isso é fundamental e basicamente corresponde a uma necessidade e a uma preocupação em qualquer área. Estou à vontade para falar porque a FisioLopes foi precisamente criada para perdurar no tempo e deixar a sua marca depois do António Lopes desaparecer. E isso só se consegue delegando competências e fomentando a interligação disciplinar. Independentemente de estarmos mais vocacionais para as estruturas musculosqueléticas, há um conceito que se sobrepõe e tem a ver com a saúde das pessoas em perspetiva abrangente. A máxima que adotámos (“A sua saúde é a nossa satisfação”) resulta dessa preocupação em influenciar a regeneração, a recuperação de quem confia no nosso trabalho.
RFD – E na família, já tem quem se proponha seguir esse trabalho?
AL – Tenho três filhos, mas só o Tiago está ligado a esta área, mais concretamente à osteopatia. O mais velho é cavaleiro tauromáquico e a mais nova ainda não escolheu o seu caminho profissional. Acima de tudo, o que me reconforta é saber que qualquer um deles, seja em que área for, entende que é fundamental trabalhar com gosto, com prazer, indo mais longe, trabalhar com amor. Eu nunca me cansei a trabalhar porque gostava muito do que fazia. E não consigo estar em nada na vida que não seja assim, a dedicar-me a cem por cento. Se não usarmos tudo aquilo que somos capazes de usar na nossa vida, pura e simplesmente não vale a pena. É isso que faz a nossa marca.
DO TRABALHO A GALOPE AOS VOOS DE PAULETA
A 5 de setembro deste ano António Lopes chegou a uma marca redonda e comemorativa. Há 40 anos concluiu o curso de fisioterapeuta na Escola do Alcoitão quando ainda estava fresca a licenciatura em Educação Física. No ISEF, a 25 de julho de 1980, com nota de 15 valores, o jovem açoriano da freguesia da Atalaia subia o primeiro degrau numa escalada académica que haveria de o fazer regressar à Terceira para construir de base uma política desportiva na ilha. Atualmente, o antigo futebolista e antigo diretor do Futebol Clube Angrense, supervisiona e coordena toda a equipa “criteriosamente escolhida” para vestir a camisola da clínica FisioLopes, estabelecida em Angra e na Praia, mas também com polos de assistência aos pacientes da Ribeirinha e dos Biscoitos. Estes dois últimos são nomes de terras e são nomes que sinalizam o trabalho diário de um homem que não tem muito tempo para estender a toalha à beira-mar ou para saborear as iguarias de uma sobremesa. Um ou outro doce é reservado para os cavalos lusitanos que cria num apeadeiro reservado para o ensino equestre. Também nesta área, António Lopes faz questão de galopar a sua máxima (“Ponho tudo o que sou naquilo que faço”) e são precisamente os cavalos que lhe estribam uma das memórias mais gratificantes no que à fisioterapia diz respeito. “Estava no princípio da minha carreira quando um moço cavaleiro, o João Carlos Pamplona, teve um acidente de trator que lhe deixou a coluna em muito mau estado. Com muita dedicação e empenho tratei da sua recuperação e conseguimos que ficasse completamente funcional. Ainda hoje anda a cavalo! Para mim foi um dos casos de maior sucesso, a exemplo do senhor Pedro, dos Correios, que tinha um pé pendente e que foi um dos pacientes que felizmente tirei da cadeira de rodas”, recorda o homem que ainda antes de Pedro Pauleta bater asas no futebol francês já se encarregava de debelar a lesão na parte posterior da coxa do histórico artilheiro da seleção nacional. Durante um ano, nas instalações do Sport Clube Angrense, o atual dirigente da Federação Portuguesa de Futebol esteve nas mãos de António Lopes, também ele um craque com direito a título europeu. Numa edição dos inesquecíveis Jogos Sem Fronteiras, disputada em Bérgamo, António foi o responsável pela preparação da seleção que liderou o ranking do Velho Continente. Pauleta concordaria que o primeiro açor a levantar voo não usou as pistas nem de Bordéus nem de Paris…