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ENTREVISTA

Rui Vitória

RFD Nº08

RUI VITÓRIA

Treinador de Futebol

 

 

EX-JOGADOR DE FUTEBOL
PROFESSOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA
RUI VITÓRIA EXPLICA A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO COMPLEMENTAR.

O treinador, que já ganhou tudo no futebol nacional e também já foi campeão na Arábia Saudita, é apologista da evolução permanente e do pleno reconhecimento do contributo de outros profissionais para o sucesso. Mantém-se fiel a um universo sem barreiras e apela à reflexão sobre medidas para ganhar o futuro.

“O fisioterapeuta pode ajudar a construir ganhos marginais de 10 a 15 por cento”

REVISTA DE FISIOTERAPIA DESPORTIVA – Para um treinador, a salvaguarda da condição atlética dos jogadores é imperial. Como é que se lida com o pesadelo das lesões?
RUI VITÓRIA (RV)Com a maior naturalidade possível. Aprendendo com cada situação, não entrando em pânico, tentando sempre perceber quais são os limites da intensidade e da determinação de cada atleta de forma a estabelecer critérios apurados no sentido de fazer um trabalho global logo no campo da prevenção.

RFD – A prevenção é uma palavra-chave no trabalho diário?
RVPrecisamente. E nos mais variados domínios. Convém notar que o lado emocional de cada indivíduo interfere bastante nas outras áreas e obriga a equipa técnica a refletir sobre situações muito específicas. A monitorização e a antecipação de zonas de risco correspondem a um conjunto de variáveis que resultam também da diferente personalidade de cada jogador.

RFD – No que respeita às lesões, existe um fator mais determinante que outro(s)?
RVEm primeiro lugar, devemos levar em linha de conta que as lesões têm naturezas distintas, como é óbvio. Por muitas ferramentas e planos de controlo que possamos estabelecer, há aspetos incontroláveis, pura e simplesmente. Veja-se o caso das lesões traumáticas. Mas há uma evidência que resulta de estudos já elaborados que aponta para uma grande relação entre determinadas lesões e a vida privada dos atletas. É possível fazer correspondência entre um motivo particular e/ou familiar com uma súbita incapacidade motora.

RFD – Por falar no lado pessoal dos atletas, há vários que contratam os seus próprios treinadores pessoais (PTs), fisioterapeutas…
RVÉ um facto. Diria que quase uma nova realidade, coincidente com uma capacidade financeira acima da média e que permite a atletas de um determinado patamar trabalhar de forma complementar.

RFD – Isso constitui um desafio para os treinadores do clube que esses atletas representam?
RVÉ desafiante, sim, porque, para já, estamos num contexto onde tudo é desafiante. Reconheço, no entanto, que o grau de acoplagem e de transparência tem de ser permanentemente reforçado. As linhas de confiança nunca podem ser destroçadas. Um atleta de elite tem de zelar pela sua condição, tem de ser uma máquina cada vez mais apurada e afinada. Nessa expetativa, contrata fisioterapeutas e outros profissionais que exercem um trabalho paralelo àquele que é efetuado nos clubes. E para o bem de todos, a relação tem de ser muito aberta.

RFD – A profunda interligação entre rendimento e condição física abre campo para os treinadores levarem para os clubes os profissionais da sua confiança no que respeita ao departamento clínico?
RVEssa é uma questão muito pertinente e muito interessante. Em certa medida, acho que corresponderia a uma situação ideal. E isto, atenção, não significa nenhuma espécie de desconfiança relativamente às relações estabelecidas ou que se podem vir a estabelecer com elementos sem antecedentes de relacionamento profissional. Mas estar rodeado de pessoas que conhecem os nossos princípios de trabalho, que comungam da nossa filosofia a 100 por cento e que dominam perfeitamente as fronteiras de comunicação com os jogadores, facilitaria de certeza a otimização das estruturas e dos resultados.

RFD – Mas nem todos os clubes poderiam ter suporte financeiro para dar corpo a essa condição por parte dos treinadores..
RV – Concordo que seria uma limitação. Mas temos de começar a pensar nisto seriamente. Claro que muitos clubes não poderiam contratar um treinador e de repente estar a recrutar mais 20 pessoas além da equipa técnica, para usar um número redondo. Simultaneamente, também se deverá reconhecer que a eliminação de determinadas etapas de reforço das regras de funcionamento iria acelerar a construção de muitos aspetos influentes no sucesso. Ganhar tempo no futebol é partir logo à frente dos demais concorrentes.

RFD – E no tempo em que começou a treinar, alguma destas condicionantes era mais percetível?
RV – Não se podem estabelecer semelhanças, na minha opinião. O treino evoluiu bastante, nós próprios, enquanto treinadores, fomos e somos obrigados a refletir constantemente. Há uma “nova” forma de treinar, de jogar e de envolvimento na profissão e, sobretudo, no quadro do alto rendimento. O perfil de um atleta de elite, para mim, desenha-se a partir de três áreas: treino, alimentação e repouso. Ora é evidente que isto só se torna fluído e complementar se a metodologia de treino e se os parâmetros de respeito pelas cadeias de comunicação concordarem no sentido de um benefício pessoal que só é válido se oferecer níveis de excelência ao coletivo.

RFD – Ou seja, a evolução foi enorme…
RV – Nos mais diferentes ângulos. Pode ter a certeza. Hoje em dia ouve falar em casos de pubalgia no futebol? Pode haver um ou outro, mas não tem nada a ver com a frequência do passado. Olhe, eu próprio, enquanto jogador, felizmente nunca tive lesões graves, mas andei longos meses incomodado com uma pubalgia. É apenas um exemplo da evolução nos ritmos de treino, nas abordagens ao trabalho, no cuidado com a prevenção, no incremento das condições de treino, nas ferramentas disponibilizadas a treinadores e a jogadores. E aqui, mais uma vez, entramos num campo em que se deve valorizar a presença e o contributo dos profissionais ligados à fisioterapia.

RFD – Em média, quantos fisioterapeutas um clube de dimensão superior pode ter ao seu serviço?
RV – Entre 3 e 6, entre 2 e 4…. Depende muito das condições de cada clube. Falamos de elementos que elevam a qualidade do trabalho e que são peças muito importantes nas máquinas dos clubes. Aliás, a tendência é para serem cada vez mais importantes no futuro, porque o caminho da individualização conduz a isso, a percebermos que podemos ter três fisioterapeutas consagrados, por exemplo, a um grupo de 10 atletas. Hoje, se calhar, estão três para um grupo de 20. A criação de laços de proximidade também fornece informação mais privilegiada e o treinador colhe frutos acrescidos.

RFD – Pode dizer-se que o profissional da fisioterapia também ajuda a ganhar campeonatos…
RV – Claro, enquanto integrante de uma estrutura que visa sempre melhorar a relação e o rendimento dos atletas. Estes podem estabelecer relações muito fortes com o fisioterapeuta. Um profissional de competência entra facilmente na cabeça do jogador e não raramente desbloqueia situações que nos resolvem problemas em prazos muito mais apetecíveis, convenientes para a antecipação de resultados. E olhe que às vezes são pormenores. Costumo dizer que por um prego se perde uma ferradura, por uma ferradura se perde um cavalo, por um cavalo se perde uma batalha e por uma batalha se perde uma guerra. Um fisioterapeuta que desenvolva a preceito o seu trabalho, nomeadamente no campo da recuperação de jogadores, é uma mais-valia preciosa, que pode ajudar a construir ganhos marginais na ordem dos 10 a 15 por cento.

RFD – Mais uma vez, nada tem a ver com aquela velha figura do massagista…
RV – Absolutamente nada. Isto não significa que possamos debater o papel fundamental que determinadas pessoas exerceram no futebol de outras décadas. O que vale também para os treinadores. Todos nós nos envolvemos em etapas de progressão e desenvolvimento. E gostaria de insistir que, no plano da comunicação mental, abriram-se horizontes que nos incentivam a ser cada vez mais capazes e cada vez mais aptos a descobrir atalhos para o sucesso. Quem está mais identificado com o futebol sabe que para um treinador é essencial perceber quando é que um jogador no plano emocional oferece pistas que nos deixam logo com a perspetiva concreta sobre o seu regime de utilização e de preparação. Como deve calcular, há gente que se afirma disponível sem o estar inteiramente e outras posturas fornecem-nos os sinais precisamente opostos, ou seja, por vezes existe uma espécie de bloqueio que é meramente psicológico e só por si pouco impeditivo. Estar habilitado a entender as dinâmicas particulares de cada um reforça o nosso papel enquanto aglutinadores de diferentes competências. Até porque o treino começa muito antes e termina muito depois da tradicionalmente denominada sessão de trabalho.