ENTREVISTA
Ft. António Gaspar
RFD Nº06
António GASPAR
Fisioterapeuta
Clínica António Gaspar
Linda-a-Velha – Oeiras
António Gaspar, o mais mediático dos fisioterapeutas portugueses, não se vê propriamente como uma marca, mas é de longe o profissional mais bem colocado para estabelecer as diferenças gigantescas face ao passado e estabelecer os desafios de maior grau de exigência num futuro já marcado pela eleição do primeiro Bastonário na Ordem.
“O fisioterapeuta era um bicho raro”
REVISTA DE FISIOTERAPIA DESPORTIVA – Após tantos anos na profissão e com a notoriedade alcançada, que desafios encontra?
ANTÓNIO GASPAR – Todos nós temos que nos reinventar em cada momento, em cada etapa. Reconheço que a idade me proporcionou outra maturidade, o que é natural e transversal a qualquer profissional. Da mesma forma que admito que estou numa nova fase da minha carreira. Após muitos anos a fazer coisas muito boas, e provavelmente algumas menos boas também, julgo que nesta altura é o tempo certo para desenvolver projetos de natureza pessoal, mas sempre em colaboração com outros colegas e sempre numa visão de partilha de conhecimento e de articulação de competências.
É o caminho que vejo para podermos, enquanto profissionais da fisioterapia, corresponder àquilo que as pessoas procuram e precisam.
RFD – O grau de exigência também aumenta…
AG – Mas isso é uma realidade própria de quem se propõe melhorar a cada dia. Nem seria concebível abordar outros e contribuir para a resolução de problemas sem primeiro tirarmos o máximo partido da tal experiência acumulada. E isso deixanos mais exigentes connosco próprios. O desenvolvimento, a
atualização de mais-valias, a dedicação ao ensino apenas são compatíveis com um grau de excelência e com o trabalho em equipa, volto a frisar.
RFD – Essa nova fase profissional que destacou tem muito a ver com o facto de o seu nome corresponder hoje em dia a uma marca?
AG – Marca? Não sei se é uma marca… O que lhe posso dizer é que me sinto reconhecido e estou muito grato a quem me presta esse reconhecimento. Se entende como marca o feedback que me é proporcionado por antigos colegas, pelos meus doentes, pelo público em geral, pelos profissionais do setor… talvez aí possamos encontrar um significado para a expressão. E, como é evidente, não desconheço que há uma componente empresarial inerente a certos projetos. Mas no dia a dia não tenho essa consciência, nem é algo que caracterize ou desvirtue a postura que sempre tive enquanto fisioterapeuta.
RFD – Mas sente que tem hoje uma responsabilidade diferente, inclusivamente no plano mediático?
AG – Isso já é uma questão um pouco diferente. É verdade que há uma responsabilidade acrescida. Precisamente por causa de um caminho com muitos anos e felizmente feito em circunstâncias maioritariamente felizes. Quando há pouco lhe dizia que temos sempre de fazer mais e melhor é também em função dessa consciência de que um eventual erro terá outra visibilidade. Seja como for, é algo que considero positivo, pois obriga-nos a ter o foco permanente nas pessoas, a não descansar, a não sermos desleixados, a preservar o rigor e o profissionalismo. No fundo, defender a nossa imagem é defender o bem-estar das pessoas e esse é o maior propósito.
RFD – Poderia concretizar um pouco mais esses projetos pessoais aos quais está dedicado?
AG – Estou envolvido em áreas de grande abrangência, o que, aliás, nem sequer é inteiramente novo para mim. Como sabe, coordeno o Centro de Reabilitação da Federação Portuguesa de Futebol e além de acompanhar os atletas que estão na seleção, muitas vezes também me desloco ao estrangeiro para os tratar. Na fisioterapia desportiva, e concretamente no campo das lesões musculoesqueléticas, tenho, juntamente com a minha equipa, desenvolvido um trabalho para a comunidade que corresponde a um esforço de crescimento e aperfeiçoamento de determinadas práticas. Também sou presidente do Conselho Consultivo do Centro Garcia de Horta e a interação com outros colegas permite-me elaborar constantemente um contributo para a formação, investigação e ensino. Além disto, presto várias colaborações com empresas no sentido de tornar mais saudável a vida dos seus funcionários e prevenir determinadas lesões. E no estrangeiro presto consultadoria a quem, independentemente de estar ou não identificado com os critérios que regem a alta competição, reconhece que um trabalho complementar assegura que o produto final vai ao encontro da satisfação das exigências do cliente. Trata-se, basicamente, de ajudar a fazer a diferença no trabalho.
RFD – O António insiste muito no trabalho em equipa. É algo que resulta das décadas de experiência no futebol de alta competição?
AG – Penso que se nós não procurarmos o trabalho em equipa, parte do conhecimento inevitavelmente vai perder-se. Sozinho ninguém consegue reunir todos os elementos e otimizar a aprendizagem. Talvez a alta competição proporcione os exemplos maiores sobre isto. A base do êxito é a partilha e o estreitamento das relações estabelecidas entre todos os profissionais. Só assim se consegue ir mais longe, fazer melhor. Se todos percebermos que há um interesse comum e soubermos fazer o aproveitamento do contributo de cada um, o resultado final pode ser quase explosivo. Nunca me desviei desta ideia.
RFD – A importância desse trabalho em equipa tem a ver com os novos desafios que os clientes despertam hoje em dia?
AG – Em certa medida. Tocou numa questão fulcral. Hoje em dia, toda a gente está muito mais informada, muito mais a par das novas tecnologias. Seja por causa daquilo que pesquisam ou do que lhes é transmitido, as pessoas já têm uma ideia muito mais concreta sobre um determinado quadro clínico. E isso traz outra responsabilidade na resposta e traz igualmente uma diferente forma de comunicar com os doentes. Há 32 anos, em Portugal, mesmo na alta competição, praticamente o papel do fisioterapeuta não era reconhecido. Não existia sequer essa figura. Eu fui o primeiro fisioterapeuta na Federação Portuguesa de Futebol e hoje temos cinco ou seis quase em regime de permanência. Antigamente, o fisioterapeuta era um bicho raro e atualmente há atletas que têm os seus próprios fisioterapeutas. Tudo isto também nos obriga a crescer todos os dias para podermos acompanhar esse conhecimento exponencial e sermos os tais veículos de transmissão dos benefícios de uma prática capaz de marcar a diferença no campo da prevenção e resolução de problemas.
RFD – Recuando 32 anos, como é que entrou no mundo da alta competição?
AG – Se calhar o princípio disto tudo foi na seleção de cadetes de basquetebol, em 1988. Tive um convite do Raul Oliveira e do José Esteves para colaborar com a Federação de Basquetebol e pouco tempo depois o Dr. Levy Aires, que estava no Hospital dos Capuchos, convidou-me para o Benfica. Em 1989 também tive oportunidade de acompanhar individualmente o Álvaro Magalhães na recuperação de uma lesão e quando surgiu a proposta do Benfica fiquei logo seduzido com a perspetiva de poder trabalhar num grande clube. E ainda por cima tratando-se do meu clube! Mas olhe que não chegámos logo a acordo. Numa fase inicial senti que não me estavam a valorizar devidamente e não me estavam a oferecer as devidas condições e demorei a aceitar. Quando finalmente tudo se concretizou, posso também dizer que se concretizou o meu sonho. Nesta vida é preciso ter sorte para que determinados caminhos se abram, mas quando isso acontece é também muito importante respondermos com grande paixão e dedicação e agarrarmos as oportunidades com unhas e dentes. Desde a primeira hora que tentei corresponder dessa maneira.
RFD – Conseguia imaginar nessa altura a projeção que iria alcançar?
AG – Naquela altura, nada disso seria sequer equacionável.
A fisioterapia não era falada, os profissionais não eram minimamente reconhecidos. Se há algo que me deixa particularmente feliz é saber que humildemente contribuí ao longo dos anos para uma maior visibilidade do setor e ajudei a catapultar esta atividade. A evolução tremenda que se registou na fisioterapia é algo de verdadeiramente fantástico e que me deixa particularmente orgulhoso.
RFD – Com a Ordem a ter agora o seu primeiro bastonário…
AG – E isso na minha perspetiva corresponde a mais um passo gigantesco. Para a regulação e reforço da identidade do setor e, consequentemente, para benefício alargado do cidadão. Tenho a certeza de que a fisioterapia vai voltar a registar um
desenvolvimento acentuado e oxalá o colega António Lopes tenha a inspiração e a ajuda necessárias para desbravar caminhos particularmente exigentes e seja aglutinador de um esforço por parte de todos os profissionais.
RFD – Vê-se um dia nesse papel?
AG – Neste momento isso não me passa pela cabeça. Talvez um dia possa equacionar. Nunca sabemos o que o futuro nos reserva. Para já, o lugar está muito bem entregue. É sinal de que há pessoas mais capazes e mais bem preparadas para um cargo que exige grande dedicação e disponibilidade. Mas estou de braços abertos para colaborar e, na medida das minhas possibilidades, contribuir para que a fisioterapia aproveite esta oportunidade única e este momento florescente para solidificar um papel primordial na saúde das pessoas.
QUANDO DELFIM SÓ QUERIA VOLTAR A PEGAR NA FILHA AO COLO
Ao longo de uma carreira recheada de episódios de acompanhamento de vários atletas de elevadíssima expressão internacional, António Gaspar elaborou uma coleção de situações marcantes. Um desses episódios acabou por fazer sobressair mais o lado humano em detrimento da componente profissional.
“Nunca vou esquecer as palavras do Delfim quando chegou ao pé de mim e só me pediu para o ajudar a ser outra vez um jovem capaz de pegar na filha ao colo. Na altura estava ao serviço do Marselha e já tinha experimentado vários tratamentos em França. Por causa de um problema complicado que tinha na coluna disse-me que não conseguia dormir e não era capaz de estar mais de 10 minutos em pé. Só queria voltar a ser uma pessoa normal. Felizmente, depois do nosso trabalho, passado um ano voltou a jogar futebol e ainda fez mais duas ou três temporadas. Correu tudo muito bem e foi particularmente gratificante essa experiência com o atleta e, em primeiro lugar, com o homem.”
A ARREPIANTE LESÃO TRANSMITIDA EM DIRETO
Jogo em Kiev, novembro de 1991. Ao serviço do Benfica, Rui Águas sofre uma lesão que impressiona quem está a ver o desafio em direto na TV. Fica com o pé pendente e nessa altura teme-se o pior. Valeu… António Gaspar e o corpo clínico dos encarnados. “Sim, por ter sido uma lesão de excecional gravidade e por todo o país a ter visto em direto, posso dizer que foi a situação mais aparatosa e talvez a mais melindrosa com que me deparei. Ainda por cima era muito jovem na altura e havia muita gente que duvidava da recuperação do Rui. Graças a Deus voltou a jogar e agora que me fala disso… parece que foi ontem e já passaram 30 anos…”
A CONFIANÇA DADA POR SIR ALEX FERGUSON
Sir Alex Ferguson é também uma referência para António Gaspar. “Em 2008, após o Europeu, o Cristiano fez uma pequena cirurgia ao pé e isso levou-me até Manchester para o acompanhar diariamente na recuperação. A forma como o clube me acolheu e, sobretudo, a maneira como o senhor Alex Ferguson me recebeu foram marcantes para mim. Uma vez chamou-me ao seu escritório e disse-me claramente para não me preocupar com mais nada além da recuperação do Cristiano. Fosse qual fosse o resultado do tratamento, o clube iria sempre assumir as responsabilidades, que estivesse tranquilo e em paz e que nada fosse perturbador na recuperação do jogador. Considero que foi um discurso espetacular porque me deu toda a confiança. A verdade é que o desfecho dessa etapa foi também espetacular e ainda estive com o Cristiano em Los Angeles nesse verão quando ele foi receber mais um prémio pelos feitos na sua carreira.”
AMARRADO E AMORDAÇADO DENTRO DO ELEVADOR
Um dia talvez possam passar a livro, mas as inesgotáveis memórias de António Gaspar no mundo do futebol tornam quase impossível a escolha de um ou outro (assinalável) momento. “São tantas as estórias… Assim de repente… Mas olhe, vou contarlhe uma que ainda hoje me dá vontade de rir às gargalhadas. No Benfica tinha o hábito, juntamente com outro colega, de fazer a ronda pelos quartos dos atletas quando estávamos em estágio nos hotéis. Perguntava em cada quarto se estava tudo bem e quando saía tirava o cartão do quarto e já sabia que as luzes se iriam apagar e eles ficavam a dormir. Mas um belo dia eles trocaram-me as voltas e amarraram-me os pulsos e puseram uma fita na boca, mesmo ao estilo de um filme de gangster’. Agarraram em mim e puseram-me dentro do elevador! Agora veja a minha figura, amarrado e amordaçado dentro do elevador, para cima e para baixo. As pessoas tocavam, a porta do elevador abria-se e ali estava eu, como se tivesse sido vítima de um crime! Ainda ouvi alguns gritos e foi até que alguém chamou a segurança do hotel e, finalmente, me libertaram. Mas era tudo uma grande brincadeira e eu próprio lidei muito bem com
a situação. Só me deu para rir…!”
A ENERGIA DA FAMÍLIA E O CONVITE DO DR. LEVY AIRES
Na hora do reconhecimento, António Gaspar não hesita na hierarquização da gratidão. “Antes de mais, tenho de fazer um agradecimento muito especial à família. Foi sempre a família que me empurrou, que me deu ânimo, que me deu e que me dá a força necessária para seguir em frente. Nos piores momentos é sempre a família que oferece apoio e compreensão e é sempre a ela que vou buscar aquela energia. O trabalho na alta competição exige muitas coisas, é um trabalho muito duro, muitas vezes nem temos férias e os nossos são os primeiros sacrificados. Em segundo lugar tenho de destacar o papel do Dr. José Carlos Levy Aires. Também sempre me apoiou e se não fosse o desafio que ele me lançou quando me convidou para o Benfica nunca tinha chegado onde cheguei e não teria crescido como cresci.”
DUELO INTENSO COM CR7 NO PINGUEPONGUE
“No futebol sou um zero à esquerda do zero à esquerda!…” É assim que António Gaspar se classifica quando desafiado a descodificar a sua veia desportiva. “Com alguns dos melhores futebolistas do mundo, quando o trabalho começa a envolver bola, eles ficam atónitos quando a bola bate nos meus pés e vai para um lado qualquer… Mas eu não desarmo e digo que é de propósito, para ver se eles reagem depressa e correm um pouco mais”, graceja o fisioterapeuta. Ainda assim, tudo muda de figura quando a bola lhe chega às… mãos. “Sempre fui melhor nos desportos com a mão. No Colégio dos Maristas desenrascava-me bastante bem
no basquetebol e no pingue-pongue cheguei a vencer vários torneios. Se alguma vez joguei pingue-pongue com o Cristiano Ronaldo? Então não? Em Manchester, em 2008, fizemos muitos jogos e garanto-lhe que não lhe ficava atrás.”
CONTROLO EMOCIONAL É FUNDAMENTAL
Portugal disputa em março o play-off de acesso ao Mundial de futebol do Catar. António Gaspar viveu no banco da seleção a frustração da derrota ante a Sérvia, mas há muito que se habituou a lidar com os êxitos estrondosos e com as maiores deceções. “Quando há um resultado negativo, é sempre complicado lidar com um balneário e nessas circunstâncias todos devem, mais do que nunca, respeitar todos. Mas nunca fui expansivo nos meus sentimentos, por natureza sou uma pessoa reservada e isso ajuda-me a preservar a frieza e a lucidez nos momentos em que temos de controlar as emoções. Quem está na alta competição sabe que tem de estar preparado para tudo. Para as situações fantásticas e para as mais desagradáveis. No fundo, nunca podemos estar frágeis. Na Luz sofremos uma desilusão, mas, se Deus quiser, agora em março vamos carimbar mais uma qualificação para mais um Campeonato do Mundo.”