ENTREVISTA
Ft. Cristina Marques & Prof. Luís Ferreira
Fisioterapeuta Classificadora da Seleção de Boccia & Selecionador de Boccia
Cristina Marques
Fisioterapeuta desde 1986
Osteopata desde 1998
Fisioterapeuta Classificadora da seleção nacional de Boccia desde 2003
Organizadora do 1.º Campeonato do Mundo de Boccia em Portugal (Lisboa’2010)
Coordenadora de estágio da Licenciatura em Osteopatia da Universidade Atlântica
Formadora nos Serviços Centrais de Segurança Social
Fisioterapeuta e osteopata em Clínica Privada
Luís Ferreira
Professor de Educação Física desde 1989
Professor na Escola do Cerco do Porto
Selecionador nacional de Boccia desde 2016
Colaborador da seleção nacional de Boccia desde 1989
Vencer a ignorância e o preconceito
No Boccia, Portugal atingiu a quota máxima de atletas (10) para os Jogos Paralímpicos de Tóquio e mais importante que as medalhas são as vitórias contra a mentalidade do passado.
REVISTA DE FISIOTERAPIA DESPORTIVA – A Cristina é fisioterapeuta classificadora na seleção. Para quem está menos identificado com a modalidade, as suas funções significam exatamente o quê?
CRISTINA MARQUES – No fundo, compete-me, além de todo o trabalho na componente específica da fisioterapia, classificar os atletas conforme as suas patologias e consequentemente distribui-los pelas diferentes classes. As patologias de natureza neurológica e funcional, por exemplo, determinam se um atleta compete em BC 4 ou não. A classe BC 4 consente todas as patologias excepto a cerebral, enquanto na classe BC 3 temos atletas que não conseguem lançar com a mão nem com o pé e precisam do auxílio de uma calha e de um assistente pessoal. Estas duas classes competem em pares e ainda temos na BC 1 e na BC 2 competições por equipas, formadas por três atletas e sem distinguir géneros, embora a Federação Internacional se prepare para estabelecer a distinção entre masculinos e femininos. Deixe-me só salientar que a nível individual há igualmente estas quatro classes e que parte do meu trabalho também se relaciona com a indicação dos atletas que têm condições para competir.
RFD – Por falar em alta competição, que balanço faz o professor Luís Ferreira aos cinco anos que já leva na condição de selecionador nacional?
LUÍS FERREIRA – Em primeiro lugar, gostaria de salientar que estou ligado à seleção há mais de 30 anos. Desde 1989 que acompanho a equipa nacional, apesar de estar neste cargo somente desde 2016. Quando assumi as funções, o objetivo era apurar o máximo de atletas para Tóquio e felizmente, graças a um grande trabalho de equipa e envolvendo várias pessoas, preenchemos a quota máxima para os Jogos Paralímpicos, qualificando 10 atletas. Pensamos que temos condições para confirmar que Portugal continua a ser uma potência mundial nesta modalidade.
RFD – Inevitavelmente, a pandemia também afetou a preparação para os Jogos Olímpicos…
LF – … Afetou em diferentes planos. Desde 13 de março de 2020 que as provas nacionais estão paradas. Só a seleção tem feito, com um grande esforço, um trabalho contínuo e promovido a participação em provas internacionais que requerem um grau de excelência. Em Portugal distribuímos a competição por Zona Norte e por Zona Sul/Centro/Ilhas mas a pandemia impediu que o ciclo competitivo se desenrolasse com normalidade. Seja como for, é gratificante sublinhar que em Tóquio vão estar 4 ou 5 atletas que nunca estiveram nos Jogos e penso que isso é um sinal que apesar de várias contrariedades fomos capazes de fazer uma certa renovação na seleção.
RFD – E a Cristina, como tem visto a evolução do Boccia, atendendo igualmente à sua vasta experiência?
CM – Comecei a trabalhar no Centro de Reabilitação e de Paralisia Cerebral em 1992 e desde 2003 que acompanho a seleção também na qualidade de osteopata. Posso dizer-lhe que a modalidade evoluiu muito e as nossas formas de intervenção também. Agora a preparação física é muito mais completa e o trabalho extraordinariamente abrangente. Desde a incidência no fortalecimento e no alongamento à estreita articulação com o psicólogo, com o nutricionista e com o selecionador há toda uma zona de cooperação que reflete os passos gigantescos que foram dados nas últimas décadas. Mas talvez a maior mudança se registe na forma como as pessoas passaram a olhar para estes atletas. Eles já são vistos como atletas pertencentes a uma modalidade adaptada às suas características mas não mais como aqueles “coitados” que estavam ali no Boccia só para se entreterem. A ignorância e o preconceito que existiam foram desaparecendo gradualmente e isso reconforta-me particularmente.
RFD – Na sua perspectiva, terá sido essa a maior conquista dos últimos anos?
CM – Sem dúvida. O maior desafio, que obviamente ainda não terminou, é olharmos para estas pessoas como olhamos para as pessoas sem nenhuma espécie de deficiência. Sem preconceitos e com a consciência de que elas podem igualmente ser atletas de alta competição.
RFD – E ao selecionador cabe, por outro lado, manter o grau de exigência sempre no máximo…
LF – É essa uma parte do meu papel. Na seleção ninguém está por recriação ou para fazer passeios. Temos mensalmente feito estágios visando a participação nos Jogos Paralímpicos e durante esses estágios, de 8 ou 15 dias, o foco é aperfeiçoarmos diariamente a nossa preparação e por isso é que convidamos em alguns casos equipas estrangeiras de nível elevadíssimo para percebermos em que ponto nos podemos situar. Os atletas de Boccia são como qualquer outro atleta de alto nível, têm de respeitar o rigor na preparação e obviamente procurar também os resultados.
RFD – O professor pode traçar a sua expectativa no que toca a medalhas em Tóquio?
LF – Como dizia um famoso jogador que fez história no futebol português… prognósticos só no final. Não sou de arriscar esse tipo de vaticínio mas quem me conhece sabe que não estou na seleção se não fosse para ajudar os atletas portugueses a chegarem ao pódio e a trazerem medalhas para Portugal. Nunca será fácil mas é essa ambição que nos move. Depois… olhe… depois até acontece esquecer-me das medalhas e dos prémios que se conquistam. Não faço contabilidade disso. Devo até confessar que em 1989, quando fui convidado pela diretora do Centro de Reabilitação do Porto para a Paralisia Cerebral para colaborar com a instituição, não tinha sequer uma ideia sobre o Boccia. Tudo acabou por ser uma novidade para mim. Nessa altura estava mais ligado ao futebol adaptado…
RFD – Enquanto selecionador também acharia importante que os grandes clubes nacionais, mais conhecidos pelo futebol, dedicassem outra atenção ao Boccia?
LF – Naturalmente. Seria uma mais-valia importante. O Sporting de Braga tem dedicado alguma atenção à modalidade, o FC Porto também, mas seria notável se todos e os dois “grandes” de Lisboa, o Sporting Clube de Portugal e o Benfica consagrassem uma particular atenção ao Boccia. Falamos de emblemas aglutinadores, capazes só por si de potenciar o recrutamento de atletas e desenhar um quadro de recrutamento para a alta competição.
RFD – Curiosamente, a Cristina já esteve ligada à organização de um Campeonato do Mundo em Portugal…
CM – É verdade e foi uma experiência bastante gratificante mas também muito exigente e difícil de cumprir. Lisboa foi a primeira capital a acolher um Campeonato do Mundo e não foi nada fácil levar a cabo esse projeto em 2010. A cidade não estava preparada no que toca a acessibilidades e foi preciso um esforço tremendo em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa para agilizarmos na medida do possível uma estrutura muito pesada. Felizmente, as condições mínimas acabaram por ser criadas e só espero que esse trabalho no campo das infraestruturas continue, a par do outro trabalho ao nível das mentalidades. Quando iniciei a minha colaboração com estes atletas cheguei a ver pessoas a pedir-nos esmola e outros a pensarem que estávamos na rua a pedir esmola.