ENTREVISTA
Telmo Firmino
RFD Nº17
TELMO FIRMINO
Fisioterapeuta Sénior
Fisioterapeuta Sénior
FUTEBOL PROFISSIONAL DO SPORT
LISBOA E BENFICA
“Temos de mudar a ideia de que a Fisioterapia é algo que requer tempo para se ver resultados”
TELMO FIRMINO (TF) – É difícil descrever por palavras, a partir do momento em que iniciei o curso passei a viver todos os dias a Fisioterapia muito intensamente. Na Escola Superior de Saúde do Alcoitão (ESSA) respirava-se a Fisioterapia de uma forma ímpar, os professores transmitiam-nos as suas experiências e ao mesmo tempo ofereciam uma visão tão apaixonada da profissão que qualquer aluno, como era o meu caso, acabava por ficar profundamente marcado.
RFD – Quando iniciou a carreira, quais eram as principais metas?
TF – Sempre fiz as coisas passo a passo, com um grande sentido autocrítico e de acordo com a minha visão da Fisioterapia e do fisioterapeuta. A principal meta nessa altura consistia em melhorar a formação-base, fazendo atualizações que preenchessem as lacunas que progressivamente ía identificando. Tentei melhorar o meu raciocínio clínico e os meus ‘skills’ práticos, rodeando-me de colegas experientes que foram muito importantes para me ajudar a crescer mais rapidamente enquanto profissional. Isso permitiu-me atingir dois grandes sonhos, trabalhar como fisioterapeuta no Desporto ao serviço de uma equipa profissional e ser professor na ESSA.
TF – Julgo que um fator determinante teve a ver com o contributo dos tais colegas mais experientes, como o José Esteves, o Paulo Araújo e o João Pedro da Fonseca. Foram pessoas a quem recorri no início da carreira para trocar ideias, esclarecer dúvidas e partilhar algumas dificuldades. Também decidi que não podia trabalhar sozinho e privilegiei a ida para ambientes clínicos onde estavam igualmente colegas que mais uma vez ajudaram a acelerar a minha progressão.
RFD – Nos primeiros anos de estudo, que percepção tinha do mundo da Fisioterapia?
TF – Eu iniciei o curso em 1994, o primeiro curso com o grau de bacharel. Em comparação com os dias de hoje era uma turma reduzida e lutávamos pela afirmação. No Desporto não tínhamos a representatividade atual e eram poucos (mas bons) os colegas que desbravavam o caminho, tornando a Fisioterapia uma profissão reconhecida e imprescindível no contexto do Desporto.
RFD – Na sequência desta questão, até que ponto evoluiu a Fisioterapia em Portugal?
TF – A Fisioterapia cresceu muito e acompanhou as melhores práticas internacionais. O nível da formação de base evoluiu para a licenciatura e hoje muitos dos colegas têm o grau de mestre e/ou doutoramento, são preletores em eventos mundiais e publicam nas melho- res revistas internacionais, produzindo conhecimento. Na área do Desporto fomos membros fundadores da International Federation of Sports Physical Therapy (IFSP) e os nossos colegas são reconhecidos internacio- nalmente, trabalhando em vários clubes e federações no estrangeiro e com muito sucesso.
RFD – Se lhe sugerisse a elaboração dos três principais fatores de crescimento da Fisioterapia em Portugal, quais gostaria de mencionar?
TF – Acredito que o primeiro fator foi claramente a pas- sagem dos cursos das Escolas Técnicas de Fisioterapia para as Escolas Superiores de Saúde, onde esses cur- sos superiores conferiam numa primeira fase o grau de bacharelato, evoluindo posteriormente para (a) licencia- tura. O meu ano foi o primeiro em Portugal que formou bacharéis em Fisioterapia. E estamos a recuar quase 30 anos, pois refiro-me a 1994. O segundo fator teve a ver com o reconhecimento que a sociedade civil deu à pro- fissão, o que levou a um aumento da procura por parte dos jovens do curso de Fisioterapia, suscitando, por tabela, um aumento do número de cursos e de vagas. O terceiro traduziu-se, na minha perspetiva, num aumento da qualidade dos fisioterapeutas com presença no mer- cado. Baseando mais a sua prática na evidência e desen- volvendo a sua formação académica de base estavam, ao mesmo tempo, a fomentar um investimento maior na evolução contínua.
RFD – Em contrapartida, quais os três aspetos mais blo-queadores da evolução da profissão?
TF – O principal é a falta de um enquadramento de carreira digno para os fisioterapeutas no que se refere à remuneração, impedindo os colegas de investir mais na formação pós-graduada. A inexistência das espe- cialidades em Fisioterapia, que permitiria diferenciar a intervenção em contextos específicos, com benefícios claros para a profissão e para os utentes, é também um bloqueador. Por último, destacaria a falta de autonomia profissional em muitos contextos, seja no sector público ou em unidades privadas. Em qualquer dos casos, os colegas vêem ainda bastante limitadas e condicionadas as suas competências profissionais.
RFD – Do ponto de vista familiar, quais as principais implicações que a sua (intensa) atividade profissional acarreta?
TF – Repito, sempre tive uma ligação muito intensa com a Fisioterapia, seja na vertente clínica (no Desporto e prática privada), seja na vertente académica, dando aulas, participando como preletor em congressos, jornadas, cursos, etc, etc. A minha família sempre me conheceu neste contexto, pelo que criámos as nossas próprias estratégias para mitigar o impacto inerente à vida de um fisioterapeuta que exerce numa equipa profissional. Trabalhar neste quadro implica termos de nos adaptar a horários variáveis, lidar com a imprevisibilidade das lesões, acompanhar atletas em recuperação nas férias, não estar presente em datas familiares importantes ou até mesmo passar meses inteiros sem uma folga.
RFD – Como é que acha que a sociedade civil, em geral, avalia o papel do fisioterapeuta?
TF – De uma forma geral a minha percepção é que temos uma boa imagem junto da sociedade civil, até porque somos profis- sionais atentos, dedicados e interagimos de uma forma contí- nua e próxima face aos utentes. No entanto, temos de mudar a ideia instituída de que a Fisioterapia é algo que requer tempo para se ver resultados. No Desporto somos obrigados a ser mais exigentes e eficazes, mostrando resultados mais rapidamente. Penso que isso deve ser replicado em outras áreas.
RFD – Que balanço faz aos anos que consagrou ao ensino? Até que ponto foi difícil abdicar do papel de docente?
TF – O balanço é gratificante porque foi uma fase muito espe- cial para mim, tive a oportunidade de fazer o que mais gosto na Fisioterapia, lecionar na ESSA e ao mesmo tempo ser Fisiotera- peuta-Coordenador das modalidades do Sport Lisboa e Benfica, trabalhando com a equipa profissional de basquetebol. Espero ter conseguido influenciar os meus alunos e ter contribuído para a sua formação base, ajudando a elaborar o perfil certo enquanto fisioterapeutas. Devo confessar que foi difícil aban- donar o ensino e só o fiz pelo convite para o futebol profissional do Sport Lisboa e Benfica. Tinha nas mãos algo de irrecusável e não conseguia pura e simplesmente conciliar com a docência.
RFD – Confirma que o mundo do Desporto continua a ser o uni- verso mais fascinante para os jovens fisioterapeutas?
TF – Para mim, sem dúvida, mas existem muitas outras áreas na Fisioterapia que também fascinam os jovens, é uma questão, na verdade, muito pessoal. O Desporto é um mundo bastante mediático, fascina facilmente mas a realidade é que ‘mexe’ muito com a vida pessoal, é exigente, intenso, desgastante e… nem todos estão preparados para pagar essa fatura.
RFD – Quais os principais desafios inerentes ao cargo que ocupa no Sport Lisboa e Benfica?
TF – Todos os profissionais que trabalham no Sport Lisboa e Benfica têm uma enorme responsabilidade, a exigência é sempre máxima e o nosso trabalho é sempre baseado nas melhores práticas disponíveis. O desafio é mantermo-nos sempre atualizados, com as melhores ferramentas, modelos e princípios de intervenção (‘hard skills’), o que é paralelo com o desenvolvimento contínuo de competências pessoais no campo da resolução de problemas, da liderança, da organização e da gestão do tempo, sem esquecer a comunicação e as relações interpessoais (‘soft skills’). No entanto, na minha opinião, o principal desafio consiste em antecipar as linhas que vão marcar a evolução da Fisioterapia na próxima década e desenvolvermo-nos consistentemente na direção certa, de forma, claro, a mantermo-nos competitivos e em condições de prestarmos os melhores cuidados possíveis.
RFD – Intimamente, o que o apaixona mais: O trabalho no terreno ou o trabalho no gabinete?
TF – Sem qualquer sombra de dúvida que é estar no terreno nas suas várias dimensões práticas, seja a tratar atletas no clube, utentes na clínica, a ensinar alu- nos numa escola de Saúde, colegas num curso ou até mesmo a colaborar em ambientes experimentais práticos, relacionados com projectos de investigação. Todas estas dimensões me apaixonam muito na Fisioterapia.
RFD – Concorda com a ideia que o mediatismo do Des- porto (e do futebol nomeadamente) teve e tem um impacto fundamental na valorização e reconhecimento do papel do Fisioterapeuta?
TF – Concordo. O Desporto move multidões e claramente o futebol teve um papel importante no reconhecimento do Fisioterapeuta, pelo mediatismo que tem. No entanto, é justo reconhecer que foram as modalidades como que o primeiro grande palco em Portugal dos fisioterapeu- tas no Desporto e às modalidades devemos o espaço que permitiu desenvolver a profissão nesse contexto. Na esmagadora maioria dos casos, resultando um grande reconhecimento da importância do nosso contributo por parte das estruturas técnicas e diretivas
RFD – Na relação específica entre fisioterapeuta e paciente/utente, quais as maiores “vitórias” que guarda em todos estes anos de trabalho?
TF – O mais importante é sempre o atleta e a forma como conseguimos contribuir para a resolução dos seus problemas. Em alta competição somos vários especia- listas a fazê-lo. Além do fisioterapeuta, há o médico, o fisiologista, o nutricionista, o psicólogo, o podologista… E o resultado final é sempre fruto do trabalho de equipa. A maior vitória que guardo é a valorização por parte dos atletas do meu contributo, da minha dedicação e do meu empenho nas suas recuperações, o que faz preser- var uma relação de confiança e de amizade em todas as situações que acompanhei e que em alguns casos conti- nuo a acompanhar.
RFD – É adequado dizer que o seu grande projeto atualmente passa pelo reconhecimento da Fisioterapia Desportiva? Em que moldes é que se processa o seu envolvimento nesta área específica?
TF – Neste momento, coordeno o grupo de trabalho em Fisioterapia no Desporto da Ordem dos Fisioterapeu- tas. Nessa qualidade, juntamente com a Bárbara Rola, o Marco Jardim, o Rúben Ferreira, a Sara Letras e o Ricardo Vidal, e até à entrada em funcionamento das Comissões Instaladoras dos Colégios de Especialidade, temos como missão apresentar à Direção contributos e recomenda- ções. Um dos aspetos mais importantes será aconselhar a Direção em matérias relacionadas com a Fisioterapia no Desporto nas suas várias componentes-chave. Posso exemplificar com aquelas mais centradas em termos técnico-científicos e com outras que se relacionam com o posicionamento político e institucional, embora também destacasse a colaboração no âmbito da criação do quadro de especializações a propor ao Conselho Geral. Aliás, aproveitaria para sublinhar que também vamos preparar a integração do subgrupo de Fisioterapia no Desporto na ‘World Physiotherapy (The International Federation of Sports Physical Therapy)’, a qual, de resto, tem em Portugal um membro fundador.
RFD – Oportunamente, escreveu aos Deputados da Assembleia da República para os sensibilizar no contexto da criação da Ordem dos Fisioterapeutas. Como encarou numa primeira fase aquela proposta de Lei para revisão dos Estatutos da Ordem, conhecendo-se a celeuma que essa proposta levantou?
TF – Pareceu-me completamente absurda. As Ordens Profissio- nais cumprem um serviço público, são um garante de segurança para a sociedade civil sobre a qualidade dos serviços presta- dos a todos os utentes. Se as Ordens perderem a competência reguladora do acesso ao exercício da profissão, que permite que apenas os profissionais com habilitações, competências e abrangidos pelos códigos éticos e deontológicos podem exercer a profissão, a sua capacidade de garantir a segurança e quali- dade dos serviços prestados fica anulada. E a história mostrou que durante décadas o Estado não foi competente em exercer essa função reguladora. A Fisioterapia foi exercida por indiví- duos que não possuíam qualquer habilitação para o exercício da Fisioterapia, colocando em causa a segurança e a qualidade dos cuidados prestados. Felizmente, a Direção conseguiu desenvol- ver esforços no sentido de que não avançasse essa proposta nos moldes inicialmente propostos pela tutela. Deixo o meu reco- nhecimento ao Sr. Bastonário e à restante Direção pelo trabalho realizado nesse sentido. Ganham principalmente os utentes!
RFD – Iniciou também uma colaboração num projeto na área da prática privada. O que o motivou?
TF – Olhe, fui desafiado por um grande amigo do tempo de estudante na ESSA, o Marco Clemente, a ser seu parceiro na ‘Physio-clem Oeiras’. Partilhamos a paixão pela Fisioterapia e no passado, ao longo do nosso trabalho associativo, desenvolvemos juntos vários eventos. Assim, porque me identifico totalmente com a visão, a missão e o ADN que o Marco cultiva na ‘Physio-clem’, aceitei o referido desafio sem qualquer hesitação. É um projecto que prestigia a Fisioterapia em Portugal e que integra excelentes fisioterapeutas.
RFD – Que mensagem gostaria de deixar aos leitores da Revista de Fisioterapia Desportiva?
TF – Gostaria de deixar uma mensagem de incentivo, para que continuem a alimentar este projecto, muito importante para a Fisioterapia em Portugal. Principalmente contribuindo com estudos de casos, artigos epidemiológicos ou metodológicos, partilhando e divulgando experiências, teorias e práticas. A existência de uma revista impressa, no contexto da Fisioterapia no Desporto, é diferenciador e prestigiante para a profissão e constitui um motivo de orgulho para todos os fisioterapeutas.